Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 159 (2020-10)

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OUTUBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 35


grandes revistas eram reaproveita-
dos nas propagandas, de tal modo
que, quando a Ladies’ Home Journal
perguntou a suas leitoras, em 1902,
qual tinha sido em sua opinião a me-
lhor ilustração editorial daquele ano,
elas elegeram um desenho que era na
verdade uma propaganda.^6 Porém, o
meio mais seguro de um anunciante
converter as massas a seus produtos
passou a ser editar ele mesmo as pu-
blicações que se encarregariam de-
les. Uma das primeiras revistas femi-
ninas francesas, Votre Beauté, foi
criada por Eugène Schueller, funda-
dor e dirigente da L’Oréal, a fim de
desenvolver a demanda por seus pro-
dutos cosméticos. Nos anos 1920, es-
sa revista, que ainda era apenas um
suplemento de uma publicação dedi-
cada aos cabeleireiros, divulgou di-
versos artigos sobre cabelos brancos,
descritos como um sinal desagradá-
vel de velhice. Esses textos acompa-
nhavam então propagandas para as
tinturas capilares.
Por meio de ilustrações, reporta-
gens e artigos, a revista preenchia
uma função fundamental de figura-
ção: fazia existir práticas, objetos e
corpos que, sem ela, permaneceriam
desconhecidos por estarem longe e,
portanto, invisíveis. Foi por meio das
revistas que as mulheres do campo e
das cidades pequenas do fim do sé-
culo XIX puderam se imaginar fazen-
do compras, observando as múltiplas
gravuras que ilustravam as mulheres
da burguesia em suas escapadas ur-
banas. Esse tipo de representação
normalizou a prática das compras
antes mesmo que ela se tornasse ma-
terial e economicamente possível pa-
ra a maioria das leitoras.
De modo similar, as revistas de-
ram vida, pela imagem, a objetos que
eram muito caros e muito novos para
existir no cotidiano. Ao aprendizado
das formas somava-se a inculcação
de um vocabulário específico, vetor
de novas normas e preocupações. Por
exemplo, nas revistas do começo do
século X X, artigos e propagandas co-
meçaram a difundir termos oriundos
da biologia e da farmacologia, como
“antisséptico”, “bactericida”, “mi-
crorganismo” e “epiderme”, a fim de
melhor convencer ao uso de produtos
de higiene e cosméticos.


A BICICLETA DO DIABO
O folhear semanal das páginas nutriu
também um imaginário social com-
pletamente distante do nível de vida
real da população. Analisando o con-
teúdo das quatro maiores revistas
norte-americanas do período – Mun-
sey, Ladies’ Home Journal, Cosmopoli-
tan e McClure –, o professor de Litera-
tura Richard Ohmann destacou uma
série de assuntos que jamais foram
abordados nelas: os operários, os po-


bres, os guetos, o trabalho, a imigra-
ção, os afro-americanos, os sindica-
tos, as greves ou ainda “as ideias
socialistas e anarquistas, e as ideias
do livre mercado propriamente ditas,
na qualidade de sistema articulado”.^7
O mundo das revistas era um espaço
sem fratura, nem material nem ideal.
Como constatou com ironia o histo-
riador Roland Marchand: “Um histo-
riador que só confiasse nesses recor-
tes sociais poderia acreditar que
todos os norte-americanos de então
eram ricos e distintos”. Quando as
classes populares apareciam nos “re-
cortes sociais” vendidos pelas revis-
tas, só eram retratadas em um papel
secundário e funcional: “Os recortes
ilustravam um mundo onde motoris-
tas, empregadas e comerciantes ser-
viam a seus patrões com deferência e
felicidade”.^8 Os recortes sociais não
exibiam a vulgaridade dos novos ri-
cos, mas ofereciam à admiração uma
classe superior que tinha tudo da
aristocracia: limpeza, bons modos e
distinção. Os serviçais eram onipre-
sentes nas imagens publicitárias nor-
te-americanas dos anos 1920 e 1930,
em uma época em que a mão de obra
doméstica se tornava, no entanto, ca-
da vez mais rara, mesmo nos lares
abastados. Em sua análise das propa-
gandas da época, Marchand revela
que 85% das domésticas representa-
das eram “jovens, brancas, magras e
com características similares às de
suas patroas”. Na verdade, a maioria
dos serviçais nos Estados Unidos na
época eram mulheres negras, predo-
minantemente mais velhas.
A última função da revista consis-
tia em vencer as resistências à socie-
dade mercantil. Desse modo, as fic-
ções publicadas nas revistas do fim
do século XIX valorizavam compor-

tamentos compatíveis com o merca-
do e contestavam as normas sociais
hostis ao consumo. Por exemplo, nos
anos 1890, a bicicleta suscitava reti-
cências quando era proposta às mu-
lheres: segundo os conservadores, ela
incitaria a masturbação e comprome-
teria o equilíbrio familiar. A propa-
ganda sozinha não bastava para con-
ter o pânico moral. Ao longo de toda a
década de 1890, as revistas empreen-
deram um trabalho de normalização,
multiplicando as belas histórias sobre
duas rodas.^9 Nesses textos, a bicicleta
possibilitava às jovens de boa família
escapadas para encontros, para final-
mente se casarem e fundarem uma
família. Propagandas vendendo os
méritos de marcas específicas acom-
panhavam as ficções, as quais contri-
buíram para neutralizar seu caráter
transgressivo e tecer no imaginário
coletivo uma série de associações po-
sitivas. A narrativa acabou quando o
objeto encontrou legitimidade. Desse
modo, a partir dos anos 1900, as his-
tórias de bicicletas se tornaram mais
raras nas revistas.

*Anthony Galluzzo é professor de Ciên-
cia de Gestão na Universidade de Saint-É-
tienne, França. Autor de La Fabrique du
consommateur. Une histoire de la société
marchande [A fábrica do consumidor. Uma
história da sociedade mercantil], La Dé-
couverte, Paris, 2020.

1 Mary Ellen Waller-Zuckerman, “‘Old Homes, in
a City of Perpetual Change’: Women’s Magazi-
nes, 1890-1916” [“Velhos lares, em uma cida-
de em perpétua mudança”: revistas femininas,
189 0 -1916 ] , The Business History Review,

v.63, n.4, Cambridge University Press, 1989; e
“Marketing the Women’s Journals, 1873-1900”
[Marketing nos diários femininos, 1873-1900],
Business and Economic History, v.18, Cam-
bridge University Press, 1989.
2 Edward Bok, The Americanization of Edward
Bok. The Autobiography of a Dutch Boy Fifty
Ye ar s Af ter [A americanização de Edward
Bok. A autobiografia de um garoto holandês
cinquenta anos depois], Charles Scribner’s
Sons, Nova York, 1920.
3 Marie-Claire, n.1, 1954, p.40-41. Citado por
Alexie Geers, Le Sourire et le tablier. La cons-
truction médiatique du féminin dans “Marie-
-Claire” de 1937 à nos jours [O sorriso e o
avental. A construção midiática do feminino
na Marie-Claire de 1937 aos dias de hoje],
Éditions de l’EHESS, Paris, 2016.
4 Gloria Steinem, Sex, lies and advertising
[Sexo, mentiras e publicidade], Ms. Magazine,
Arlington (Virgínia), jul.-ago. 1990.
5 Michael B. Miller, Au Bon Marché, 1869-1920.
Le consommateur apprivoisé [No Bon Mar-
ché, 1869-1920. O consumidor domestica-
do], Armand Colin, Paris, 1987.
6 Carolyn L. Kitsch, The Girl on the Magazine Co-
ver. The Origins of Visual Stereotypes in Ameri-
can Mass Media [A garota na capa da revista.
As origens dos estereótipos visuais na mídia de
massa norte-americana], The University of
North Carolina Press, Chapel Hill, 2001.
7 Richard Ohmann, Selling Culture. Magazines,
Markets and Class at the Turn of the Century
[Vendendo cultura. Revistas, mercados e
classe na virada do século], Verso, Londres/
Nova York, 1996.
8 Roland Marchand, Advertising the American
Dream. Making Way for Modernity, 1920-
1940 [Propaganda do sonho norte-america-
no. Abrindo caminho para a modernidade,
1920-1940], University of California Press,
Berkeley, 1985.
9 Ellen Gruber Garvey, The Adman in the Parlor.
Magazines and the Gendering of Consumer
Culture, 1880s to 1910s [O publicitário na sa-
leta. Revistas e a criação da cultura consumi-
dora, dos anos 1880 aos 1910], Palgrave
Macmillan, Nova York, 1996.

© Edson Ikê

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