Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 159 (2020-10)

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8 Le Monde Diplomatique Brasil^ OUTUBRO 2020


Quem tem medo


da sociedade civil?


Quem tem poder para escrever uma declaração universal de direitos? Quem sabe
mobilizar milhares de pessoas e parar a economia? Quem resiste firmemente ao racismo
e à violência por séculos? Não são indivíduos isolados, mas principalmente os grupos,
coletivos e movimentos; são organizações da sociedade civil

POR DENISE DOURADO DORA*

NA LINHA DE FRENTE DA DEFESA DAS LIBERDADES


E


m 10 de dezembro de 1948, a As-
sembleia Geral das Nações Uni-
das aprovou a Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos. No
plenário da ONU apareceram os gran-
des personagens que ajudaram a pro-
duzir esse documento, como Eleanor
Roosevelt, Rene Cassin e outros. En-
tretanto, quando se recorre aos arqui-
vos de memória desse período, às atas
das reuniões, às propostas apresenta-
das, vemos que havia grandes perso-
nagens nos bastidores do processo,
personagens coletivos que represen-
tavam milhares, centenas de milha-
res de indivíduos e vozes. Eram as or-
ganizações da sociedade civil, que
traziam a esses fóruns de debate glo-

bal as demandas e histórias de pes-
soas de todos os cantos do mundo.
Podemos imaginar quantas ques-
tões foram trazidas pelos represen-
tantes de pessoas massacradas na Se-
gunda Guerra Mundial pelo
antissemitismo, pelas lutas anticolo-
niais na África, pelas populações ori-
ginárias da América Latina? Seria
possível pensar em direitos sem uma
sociedade civil ativa e solidária?
Essa Declaração Universal, escri-
ta por muitas e muitas mãos, fala de
algumas liberdades indispensáveis,
como a liberdade de opinião e de ex-
pressão, de informação e de reunião
e associação pacíficas. Assim, o di-
reito de reunir-se e de formar grupos

associativos passa a ser inscrito na
gramática de direitos humanos co-
mo um exercício de liberdade
fundamental.
Sabemos que, antes disso, leis na-
cionais já admitiam e regulavam a
prática de associar-se; muitas vezes
não para todo mundo, já que leis res-
pondem – em regra geral – a interes-
ses dominantes. Trabalhadores/as
criarem sindicatos, povos negros re-
gistrarem terreiros, mulheres vota-
rem e formarem partidos são exem-
plos de interdições do século X X ao
direito de organizar-se, algumas pre-
sentes até hoje.
Por isso, talvez, as mobilizações e
organizações da sociedade civil pro-

voquem medo em alguns governan-
tes. Afinal, quem tem poder para es-
crever uma declaração universal de
direitos? Quem sabe mobilizar mi-
lhares de pessoas e parar a economia?
Quem resiste firmemente ao racismo
e à violência por séculos? Não são in-
divíduos isolados, mas principalmen-
te os grupos, coletivos e movimentos;
são organizações da sociedade civil.
Não por acaso, em seu discurso no dia
22 de setembro, o presidente Jair Bol-
sonaro converteu a 75ª Assembleia
Geral das Nações Unidas em platafor-
ma de desinformação: nesse espaço
institucional, e como autoridade re-
presentando uma nação, disparou
notícias falsas e jargões sem evidên-
cias sobre o vazamento de petróleo na
costa brasileira, as queimadas na
Amazônia, Cerrado e Pantanal, o va-
lor do auxílio financeiro aprovado pe-
lo Congresso Federal na pandemia e a
gestão catastrófica da emergência de
saúde pública no Brasil.
A isso somou ataques à liberdade
de imprensa e aos direitos de asso-
ciação e participação social, ao insis-
tir em hostilizar comunicadores e or-
ganizações da sociedade civil. Ao
contrário do que tentou, o discurso
de Jair Bolsonaro só deixou ainda
mais evidente a importância e a ur-
gência da existência e do fortaleci-
mento de povos tradicionais, de co-
munidades indígenas e quilombolas,
da liberdade de imprensa, de organi-
zações da sociedade civil, de defen-
sores de direitos humanos e ambien-
tais no Brasil. Como uma rede tecida
por muitos fios, são as instâncias co-
letivas que produzem a teia e os vín-
culos entre pessoas e os projetos de
uma nação, trazendo as experiências
e demandas de gente muito diversa,
enriquecendo o debate público, sain-
do da caixa das formas tradicionais
de representação.
Entretanto, o discurso – embora
falacioso – não é vazio. O governo fe-
deral tem, desde janeiro de 2019, in-
vestido contra a liberdade e a autono-
mia da sociedade civil e as expressões
de liberdade de opinião. Para não
deixar dúvidas sobre suas intenções
de erodir o espaço público não gover-
namental brasileiro – se alguém ain-
da as tinha –, em 1º de janeiro de 2019
o governo publicou a MP n. 870/2019,
que em seu artigo 5º, ao tratar das
competências da Secretaria de Go-
verno da Presidência da República,
indica que esta tem o papel de “II –
supervisionar, coordenar, monitorar
e acompanhar as atividades e as
ações dos organismos internacionais
e das organizações não governamen-
tais no território nacional”. Primeiro
dia de governo!
A intenção precisa de comprome-
ter a autonomia das ONGs aparece
nos verbos “supervisionar, coorde-

© Marcelo Camargo/Agência Brasil

Indígenas, quilombolas, negros e mulheres são os que mais sofrem violações de direitos

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