OUTUBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 7
mentos de gravações que contrariam
a lei brasileira sobre o assunto, che-
gando inclusive a gravar a defesa do
ex-presidente.
Vale a pena utilizar dados compa-
rados sobre quando um juiz é impe-
dido de continuar presidindo um jul-
gamento nos Estados Unidos. Ali, o
fato de o juiz ter conhecimento pré-
vio do caso ou ter atuado de forma
ilegal é, em geral, suficiente para ser
impedido de atuar. No julgamento do
ex-presidente Lula coube ao próprio
Sérgio Moro dizer por que ele conti-
nuava sendo um juiz neutro. Cito sua
sentença do caso: “No entendimento
deste julgador, respeitando a parcial
censura havida pelo ministro Teori
Zavascki, o problema nos diálogos in-
terceptados não foi o levantamento
do sigilo, mas sim o seu conteúdo,
que revelava tentativas do ex-presi-
dente Luiz Inácio Lula da Silva de
obstruir investigações e a sua inten-
ção de, quando assumisse o cargo de
ministro-chefe da Casa Civil, contra
elas atuar com todo o seu poder polí-
tico”. Analisemos o julgamento pro-
ferido pelo então ministro Teori nes-
se caso para ver se de fato o juiz
interpreta a censura que recebeu de
forma correta. Afirmou Zavascki no
ponto 7 de sua decisão: “Ainda mais
grave, procedeu a juízos de valor so-
bre referências e condutas de ocu-
pantes de cargos previstos nos arti-
gos 102 I, b e c”. Ou seja, estamos
diante de um juiz que tergiversou em
questões processuais, que contou
com o apoio da mídia para fazê-lo e
que, assim, degradou a imparcialida-
de do sistema de justiça no Brasil.
A mais grave dessas operações foi
a que pautou no STF um caso parti-
cular de habeas corpus, o de Lula, an-
tes de uma ação genérica sobre o te-
ma e que determinou a prisão do
ex-presidente. São igualmente graves
as decisões do ministro Edson Fa-
chin de remeter ações ao plenário, a
seu bel-prazer, quando ele está em
minoria na segunda turma do STF.
Como resultado, coloca-se a questão
da ascensão do Judiciário ao papel de
força política com poder de veto so-
bre o sistema político e com elemen-
tos muito fortes de privilégio interna
corporis. A trajetória anterior do STF
de dois pesos e duas medidas e de re-
lativização das regras do estado de
direito degradou a democracia ainda
antes da posse de Bolsonaro, que
aprofundou o processo.
Todos esses elementos sugerem
que o Judiciário brasileiro é parte de
um itinerário de ascensão do poder
das instituições contramajoritárias
acima do sistema político. Trata-se de
um detour jurídico por meio do qual
os membros do Poder Judiciário têm
a capacidade não apenas de se ex-
pressar para além das regras do esta-
do de direito, como também de se as-
sociar a outros atores que o fazem
abertamente. Essa postura de enfra-
quecimento do estado de direito foi
aproveitada por Jair Bolsonaro, tor-
nando ambos – a democracia e o es-
tado de direito – ainda mais vulnerá-
veis em nosso país.
GOVERNO BOLSONARO, MILITARES
E DEGRADAÇÃO INSTITUCIONAL
O período que teve início em 2016 en-
volve dois momentos diferentes. No
primeiro, uma democracia pratica-
mente consolidada abriu mão de ser
uma democracia plena para se tornar
um arranjo entre elites conservado-
ras capitaneadas pelo PMDB e pelo
PSDB e associadas às forças do mer-
cado. Degradou-se ali a democracia
de forma que talvez pudesse ser re-
vertida em 2018, mas, por causa das
intervenções judiciais e militares,
não houve reversão. Com a eleição de
Jair Bolsonaro passamos a um segun-
do momento, no qual se agregou em
torno do presidente um conjunto de
atores com baixas convicções demo-
cráticas – se é que possuem alguma.
Penso aqui no atual ministro da Jus-
tiça, ou na ministra dos Direitos Hu-
manos, que viola direitos de uma
criança de 10 anos, ou no Procura-
dor-Geral da República, que desmon-
ta toda a estrutura de direitos cons-
truída pela instituição. Com o capitão
reformado na Presidência, a degrada-
ção deixa de ser uma consequência e
passa a ser um objetivo.
O bolsonarismo degrada as insti-
tuições de duas maneiras: em pri-
meiro lugar, por meio de uma rede
impressionante de geração de fake
news. Graças a ela, consegue atacar o
sistema político, o STF e até mesmo o
Carnaval do Rio de Janeiro. Esses
ataques reduzem a legitimidade das
instituições políticas – que já era bai-
xa desde 2014 e tornou-se baixíssima
em 2018. Apenas 1% dos brasileiros
confia muito em partidos políticos e
um número um pouco superior no
Congresso Nacional. Ao reforçar o
ataque a essas instituições, o bolso-
narismo cria um caldo de cultura pa-
ra que seu fechamento seja defendi-
do abertamente nas ruas, tal como
vimos nos meses de abril, maio e ju-
nho de 2020. Em relação ao STF, a si-
tuação é ainda pior, porque o bolso-
narismo vende a ideia de que a
democracia se fortaleceria se não
houvesse a atuação da corte na revi-
são de atos do governo. Mas o que
mais preocupa no bolsonarismo é
que ele não opera com um padrão de
bom governo. Pelo contrário, defen-
de a ideia anti-iluminista e antirre-
publicana de que o papel da política
não está na melhora do governo ou
no exercício virtuoso do poder, e sim
em sua utilização para a manuten-
ção de um status quo conservador.
Ao mesmo tempo, o bolsonaris-
mo não tem nenhum prurido em re-
baixar o nível de atuação de institui-
ções que a princípio entendemos
como republicanas. Depois de arra-
sar as políticas de educação superior
e de direitos humanos em 2019, a
atenção de Bolsonaro voltou-se para
o Ministério da Justiça, a Polícia Fe-
deral e o STF. Assim, na medida em
que a pauta ideológica de desestru-
turar as políticas públicas na área de
educação superior, direitos huma-
nos e meio ambiente foi alcançada
no ano passado, vimos uma nova
pauta ainda mais problemática nes-
te ano: a adaptação de instituições
do sistema de justiça aos objetivos
do clã Bolsonaro. Assim, o objetivo
do Ministério da Justiça passou a ser
vigiar a oposição, defender o presi-
dente no STF ou tentar indicar dire-
tores da Polícia Federal com o intui-
to de inf luenciar processos nos
quais os filhos do presidente estão
envolvidos. Assim, as instituições
políticas cumprem dois papéis no
bolsonarismo: deixar o presidente
aplicar seu programa político a des-
peito dos pesos e contrapesos do sis-
tema político brasileiro e ser o lugar
da distorção dos objetivos do siste-
ma de justiça.
O bolsonarismo constitui um ti-
po raro de associação entre governo
não virtuoso e conservadorismo. O
conservadorismo no Brasil tentou
historicamente se constituir em uma
forma envergonhada de defesa do
status quo. Desde o período abolicio-
nista até o final da ditadura militar,
essa foi a postura hegemônica: ser
conservador e tentar passar uma
imagem de progressista. Assim, o re-
gime militar se importou com as crí-
ticas na área dos direitos humanos,
assim como Collor demarcou reser-
vas indígenas e dialogou com forças
na área do meio ambiente. O bolso-
narismo representa uma nova forma
de conservadorismo, um conserva-
dorismo ideológico e anti-institucio-
nal que rompe com os padrões nor-
mais da democracia e despreza as
instituições democráticas. Ou estas
colocam fim no bolsonarismo, ou ele
poderá comprometer decisivamente
seu funcionamento.
*Leonardo Avritzer é professor do De-
partamento de Ciência Política da UFMG e
autor de diversos livros, dos quais o mais
recente é Política e antipolítica: a crise do
governo Bolsonaro (Todavia, 2020).
1 As chamadas “pedaladas fiscais” fazem par-
te da lei de responsabilidade fiscal que
emendou alguns artigos da Lei n. 1.079/
sobre o impeachment. Existem dois proble-
mas com essa via de remoção da presidenta.
O primeiro é a generalidade do uso da suple-
mentação orçamentária sem autorização
pelo Executivo no Brasil. Todos os presiden-
tes desde 1994 utilizaram esse instrumento,
e o próprio vice-presidente Michel Temer re-
correu a ele no exercício da prerrogativa de
presidente. Assim, houve a aplicação de um
dispositivo menor da lei do impeachment
com a quebra do princípio da igualdade pe-
rante a lei.
© Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Ricardo Lewandowisk durante o julgamento do impeachment de Dilma Rousseff
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