Revista de Vinhos - Edição 371 (2020-10)

(Antfer) #1

60 · Revista de Vinhos ⁄ 371 · outubro 2020 @revistadevinhos


Há quem diga que o Barca-Velha é um vinho caro. Quanto custa um
Rolls-Royce ou um Aston Martin? Quanto pagamos, afinal, por um
grande ícone mundial de Bordéus, da Borgonha ou de Champagne?
O mercado, sempre o mercado, tratará de estabelecer o preço final
do mais icónico vinho tranquilo português, que representa a con-
cretização do sonho de uma mente tão inquieta quanto genial – a de
Fernando Nicolau de Almeida.
O enólogo criador do Barca-Velha começou a imaginá-lo ainda
nos anos 40 do século XX. Há livros que aprofundam o tema, mas o
maior segredo enológico, numa altura em que o Douro não só parecia
como verdadeiramente estava mais longe e quase inacessível do Porto,
esteve na refrigeração. Os blocos de gelo transportados em camiões a
partir da Lota de Matosinhos foram a chave que descodificou muitos
dos processos de controlo de fermentação e temperatura das uvas
que, naquele tempo, estavam sobretudo pensadas para o Vinho do
Porto.
Há a história e as estórias que se contam a pretexto de um vinho
que se afirmou para lá disso, elevando-se ao patamar de mito. Luis
Sottomayor, o atual enólogo, relembra a de um fantasma, um padre
sem cabeça, que um dia terá tentado estrangular o então encarre-
gado dos armazéns de Vila Nova de Gaia, numa noite de vindimas no
Douro, na Quinta do Vale Meão, então pertença da Casa Ferreirinha.
Terão sido os vapores do Barca-Velha a criar o dito padre?
Três, somente três enólogos são até hoje os criadores do Barca-
Velha: Fernando Nicolau de Almeida, o mentor de um vinho cuja
primeira colheita é de 1952 (os livros de registos apontam 17 meias
pipas de 225 lts.); José Maria Soares Franco, o continuador do sonho
e que decisivamente o ajudou a afirmar por diferentes edições; e Luis
Sottomayor, que ainda conheceu o mestre ao entrar na empresa, em
1989, que durante anos trabalhou ao lado de “Zé Maria” e que agora,
aos 57 anos, assina o segundo Barca-Velha de plena responsabilidade
(depois de participar na elaboração do 2000 e de ter elaborado o
2008).


O leão que é a estrela


Desafiado a explicar o novo Barca-Velha 2011, Luis Sottomayor
estabelece uma curiosa analogia com o rei da selva. “Equiparo o 2011
a um leão porque é um animal com carácter, personalidade, que sabe
o que vale. Respira confiança, personalidade, carácter, é um vinho que
impõe respeito”, observa.
É um ano de exceção, onde tudo pareceu perfeito no Douro. Não só
os DOC são memoráveis como também os Porto Vintage 2011 foram
aclamados de pé pela crítica internacional. O inverno mostrou-se
frio e chuvoso, mas pouco choveu desde o final da primavera até ao
início do outono (sendo que nos dias 21 de agosto e 1 de setembro
foram contabilizados 35 e 40 mm de pluviosidade, respetivamente).
O lote do vinho aliou Touriga Franca (45%), Touriga Nacional (35%),
Tinto Cão (10%) e Tinta Roriz (10%), uvas da Quinta da Leda, em
Almendra, Douro Superior, que desde meados dos anos 80 garantem
a matéria-prima essencial para o vinho.
A parcela de vinha Apeadeiro, debruçada sobre o rio, contribuiu
decisivamente para fazer do 2011 uma edição de colecionador. São
5,6 hectares de Touriga Franca, que ali se expressa de forma exemplar,
conjugando notas florais elegantes a uma estrutura à prova de bala.
“Nunca tive dúvidas sobre a qualidade, a evolução em barrica e o
lote final”, garante Luis Sottomayor.


Apesar da importância muito significativa que o lançamento do
Barca-Velha assume na Sogrape, a decisão final cabe sempre aos enó-
logos. “Nunca o Luís está pressionado, não é isso que nos move”, diz-
-nos Fernando da Cunha Guedes, o presidente da Sogrape. “O que nos
move e preside e a excelência do vinho”, complementa.
O Barca-Velha é uma espécie de cereja no topo do bolo, mas não é
mais importante que outros. O líder da Sogrape lembra tratar-se de
um vinho nascido a partir da paixão de um enólogo e recorda outro
caso de sucesso, nascido de outra paixão. O Mateus, o mais popular
vinho português à escala global, foi curiosamente também pensado
nos anos 40 do séc. XX, tal como o Barca-Velha, na altura pelo avô,
Fernando van Zeller Guedes.

O ritual e a eterna questão

Saber esperar pode ser desesperante, mas no caso do vinho é quase
sempre virtuoso. E os grandes vinhos precisam de tempo, mere-
cem-no.
Estará aí uma das razões pelas quais o Barca-Velha também é espe-
cial, na medida em que são cada vez mais raros os vinhos lançados
após sete, oito ou nove anos sobre a colheita. As 33.766 garrafas da
edição 2011 (um número bastante apreciável para a realidade portu-
guesa dos vinhos de qualidade excecional) foram engarrafadas no dia
6 de maio de 2013, após cerca de 18 meses de estágio em barricas de
carvalho francês. Ora, se à partida já estaríamos perante um grande
vinho, imagine-se a dimensão alcançada com este tempo de espera. Se
o tivéssemos provado em 2013, o Barca-Velha 2011 já seria um vinho
com a monumentalidade de hoje?
O que impressiona igualmente nesta 20ª edição é perceber o
notável caminho que ainda tem a percorrer. Sim, haverá certamente
mais uma década e meia de evolução tranquila e sem sinais de can-
saço, o que será dos melhores elogios que um vinho já com nove anos
pode merecer.
O ritual da declaração, garantem-nos, mantém-se. Quando entende
ter chegado o momento, o enólogo do Barca-Velha reúne a adminis-
tração da Sogrape num almoço para anunciar en primeur a existência
de uma nova raridade.
Um elogio ao Douro, um embaixador do que de melhor os vinhos
portugueses podem demonstrar. Os portugueses, aliás, são dos pri-
meiros a percebê-lo e constituem o principal mercado. Seguem-se os
Estados Unidos, o Reino Unido e o Brasil, este último também com
carinho histórico pela marca.
Será o Barca-Velha o zénite ou o apogeu da enologia, o sonho vivo
que qualquer enólogo gostaria de vivenciar? Quando a Revista de
Vinhos desafiou os irmãos Fernando Cunha e Manuel Guedes a jun-
tarem-se a Luis Sottomayor numa barca velha, saindo da Ribeira de
Aguiar para o rio Douro com a Quinta da Leda em fundo, percebemos
que a par da natureza é a confiança e a cumplicidade entre pessoas
que ajuda a tornar sonhos promissores em obras maiores.

CASA FERREIRINHA
R. Carvalhosa 19 / 4400-032 Vila Nova de Gaia
T. 223 746 106 / 07/ 08
M. 937 850 335 / E. [email protected]

BARCA-VELHA
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