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Correio Braziliense/Nacional - Política
quinta-feira, 22 de outubro de 2020
Cenário Político-Econômico - Colunistas
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Autor: Por Luiz Carlos Azedo [email protected]
A teoria do dano e a vacina
A ideia de que um presidente eleito por maioria pode
tudo é profundamente autoritária e colide com os
fundamentos do liberalismo moderno, apesar de agora
ter virado moda em algumas democracias do Ocidente,
inclusive a nossa. O filósofo e economista John Stuart
Mill, um liberal utilitarista britânico que se inspirou nas
ideias dos iluministas franceses, em meados do século
XIX já classificava essa visão como uma "tirania da
maioria", expressão que causa certo espanto, porque
muitos acham que maioria e democracia são
exatamente a mesma coisa. Não são.
Sobre a Liberdade (Saraiva), um clássico da ciência
política, é um libelo de Mill em defesa da liberdade de
expressão e da autonomia dos cidadãos. Nascido em
Londres, em 1806, destacou-se também pela defesa do
civismo público e dos direitos das mulheres. Era um
liberal progressista. Acabou preso por defender o direito
ao aborto, a reforma agrária e a democratização da
propriedade por meio de cooperativas, ideias social-
liberais. Tentou definir um modelo para regular as ações
entre os cidadãos, a sociedade e o Estado, que deveria
ser capaz de preservar a autonomia individual e, ao
mesmo tempo, evitar a "tirania da maioria", a partir de
um conceito simples: tudo é permitido ao indivíduo,
desde que as suas ações não causem danos a
terceiros.
Mill defendia a legitimidade da mobilização da opinião
pública para convencer as pessoas a não tomarem
certas atitudes, mas condenava a repressão direta a
ações individuais que afetam apenas a própria vida. É
possível desenhar a sua "teoria do dano": todas as
pessoas podem desenvolver de maneira autônoma o
seu projeto de vida; a sociedade deve proteger a
liberdade de indivíduos se desenvolverem de modo
autônomo e, em troca, os seus membros não devem
interferir nos direitos legais alheios; os danos
eventualmente causados por um indivíduo a outras
pessoas têm como consequência uma punição
proporcional. Mill morreu em 1873, mas suas ideias
sobre a liberdade individual continuam atuais.
Rebanho
No Brasil, a "teoria do dano" foi introduzida na nossa
jurisprudência no Código Civil de 1916, que estabeleceu
um nexo causal entre o dano e o fato que o produziu, e
foi consagrada no artigo 403 do Código Civil de 2002.
Segundo a teoria do dano direto e imediato, o Estado
pode ser processado pelos prejuízos causados aos
cidadãos. Por ironia, em tempos de pandemia e de
"imunização de rebanho", ou seja, da necessidade de
vacinação em massa para combater o novo
coronavírus, um caso analisado pelo jurista Robert
Joseph Pothier, um dos autores do Código Civil francês
de 1808, é estudado ainda hoje nas escolas de direito: a
aquisição de uma vaca pestilenta, que contamina os
bois do comprador, impedindo-o de cultivar suas terras.
Ciente do vício oculto, o vendedor responde pelo
perecimento da vaca como também pela morte do