Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 160 (2020-11)

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12 Le Monde Diplomatique Brasil^ NOVEMBRO 2020


No Terceiro Mundo,


o confinamento é devastador


Com a pandemia de Covid-19, o planeta vive a crise econômica mais grave desde o período entreguerras. Explosão do
desemprego, insegurança alimentar, evasão escolar... Se os efeitos do “grande confinamento” são sentidos em toda
parte, eles são multiplicados nos países pobres, onde o setor informal, desprovido de proteção social, prevalece

POR GILBERT ACHCAR*

O IMPACTO DA PANDEMIA SOBRE OS PAÍSES POBRES


A


ssim como as consequências
das mudanças climáticas são
sentidas em todas as latitudes,
a pandemia de Covid-19 não
poupa ninguém, rico ou pobre, chefe
de Estado ou refugiado. No entanto,
sabemos que essas crises planetárias
não atingem da mesma forma todos
os seres humanos. Além de haver vul-
nerabilidades diferentes dependendo
da idade e dos diversos fatores de ris-
co, a pandemia, a exemplo do aqueci-
mento global, tem impactos muito di-
versos ao redor do mundo, bem como
dentro de cada país, que acompa-
nham as tradicionais divisões entre
ricos e pobres, brancos e não brancos
etc. É verdade que a infecção de Do-
nald Trump veio confirmar que o ví-
rus não se importa com posições polí-
ticas, porém o tratamento excepcional
oferecido ao presidente dos Estados
Unidos, a um custo estimado de mais
de US$ 100 mil por três dias de hospi-
talização,^1 mostra muito bem que,
embora os seres humanos sejam to-
dos iguais diante da doença e da mor-
te, alguns, como escreveu George Or-

well em A revolução do bichos, são
“mais iguais que os outros”.
Como de costume, o Terceiro
Mundo foi o mais afetado pela crise
econômica em curso, chamada pelo
FMI, em seu relatório semestral de
abril de 2020,^2 de “grande confina-
mento” – uma crise que já é a mais
grave desde a Grande Depressão do
período entreguerras. O Terceiro
Mundo é o terceiro estado planetário,
do qual apenas alguns países da Ásia
oriental conseguiram se separar des-
de que o economista Alfred Sauv y
criou o termo, em 1952. Aqui, ele será
definido como o conjunto dos países
de renda baixa, média baixa ou mé-
dia alta, de acordo com a classifica-
ção do Banco Mundial, excetuando-
-se a China e a Rússia, que, embora
sejam países de renda média alta, são
potências mundiais.

VULNERABILIDADE DOS INFORMAIS
Em escala internacional, o “grande
confinamento” causou um acentua-
do aumento do desemprego. Mas o
impacto social desse desemprego é

muito mais forte no Terceiro Mundo
do que nos países ricos, onde medi-
das onerosas foram adotadas para
mitigar suas consequências. Cerca de
332 milhões de empregos de tempo
integral foram destruídos em todo o
mundo nos três primeiros trimestres
de 2020, uma perda de 11,7% em rela-
ção ao último trimestre de 2019. Des-
ses empregos, 143 milhões estavam
em países de renda média baixa
(–14%), 128 milhões em países de
renda média alta (–11%) e 43 milhões
nos países ricos (–9,4%), segundo a
Organização Internacional do Traba-
lho (OIT).^3 E, embora os países de
renda baixa tenham perdido “ape-
nas” o equivalente a 19 milhões de
empregos (–9%) nesse período, tal
número não ref lete o impacto socioe-
conômico da crise pela qual estão
passando. Nesses países, assim como
naqueles de renda média baixa, a
grande maioria dos empregos e das
atividades independentes está no se-
tor informal, que absorve 60% do tra-
balho global e é, por definição, des-
provido de qualquer proteção social.

Em um relatório recente, o Banco
Mundial estimou que, sob o efeito da
pandemia, em 2020 houve um cresci-
mento da extrema pobreza, definida
pela entidade como a situação em
que o indivíduo precisa sobreviver
com menos de US$ 1,90 por dia – isso
não acontecia desde 1998, após a cri-
se financeira asiática de 1997.^4 A Ásia
meridional foi a mais atingida em
números absolutos: entre 49 milhões
e 56,5 milhões de pessoas a mais do
que o previsto antes da pandemia
devem cair abaixo do limite de extre-
ma pobreza este ano, ou permanecer
abaixo dele. Para a África subsaaria-
na, serão entre 26 milhões e 40 mi-
lhões de pessoas, confirmando a po-
sição do subcontinente como a
região do mundo com o maior índice
de extrema pobreza. A variação fica-
rá entre 17,6 milhões e 20,7 milhões
de pessoas para os países em desen-
volvimento da Ásia oriental;^5 na
América Latina, o número pode che-
gar a 4,8 milhões de pessoas, e a 3,
milhões na região que compreende o
Oriente Médio e a África setentrio-
nal. No total, de acordo com o Banco
Mundial, de 88 milhões a 115 mi-
lhões de pessoas cairão abaixo do li-
mite de US$ 1,90 ou permanecerão
nessa faixa em 2020, por causa da
pandemia. O aumento líquido no nú-
mero de pessoas muito pobres em re-
lação a 2019 ficará entre 60 milhões e
86 milhões de indivíduos.
Desde 2013, com a aceleração das
mudanças climáticas, cujas primei-
ras vítimas são as populações mais
pobres, e os novos conf litos, como os
da Síria, do Iêmen e do Sudão do Sul,
o declínio da pobreza vinha se desa-
celerando. O “grande confinamen-
to” terminou a tarefa de colocar fora
de alcance o “objetivo de desenvol-
vimento sustentável” estabelecido
pela ONU em relação à extrema po-
breza: baixar a taxa mundial a 3%
até 2030. Em 2015, essa taxa ainda
estava em 10%, o equivalente a 736
milhões de pessoas. Segundo o Ban-
co Mundial, em 2030 ela deverá estar
em torno de 7%.

© Anushree Fadnavis/Reuters


Milhões de indianos deixaram os centros urbanos a pé, de bicicleta ou de carona, buscando voltar para suas vilas

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