Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 160 (2020-11)

(Antfer) #1

NOV EMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 19


de ajustes que percorrem toda a so-
ciedade: pânico na Bolsa, desmoro-
namento do preço do petróleo, fim
do crédito, redução do consumo, vo-
latilidade das taxas de câmbio, aban-
dono da ortodoxia orçamentária etc.
A irrupção da Covid-19 primeira-
mente pegou os comentaristas mi-
diáticos desprevenidos e até mesmo
os agentes públicos, incapazes de en-
contrar palavras para descrever a si-
tuação que deviam enfrentar. Depois
da guerra ao terrorismo, era apro-
priado declarar guerra a um vírus?
Era pertinente qualificar como “re-
cessão” o que na verdade é uma deci-
são política e administrativa de parar
todas as atividades que não são ne-
cessárias à luta contra a pandemia e à
vida cotidiana?
Não especialistas e dirigentes po-
líticos puderam acreditar que o avan-
ço da biologia permitiria um controle
rápido da Covid-19. Isso era o mesmo
que ignorar as advertências dos pes-
quisadores em virologia: não há um
vírus típico, cada um tem caracterís-
ticas que devem ser descobertas ao
mesmo tempo que ele se espalha. As
autoridades então tiveram de tomar
decisões de longo alcance diante de
uma incerteza radical. Como decidir
hoje, quando ainda não se sabe o que
acabaremos sabendo depois de ama-
nhã – infelizmente tarde demais?
Adeus ao cálculo econômico racio-
nal! O resultado foi um mimetismo
geral: mais vale se enganar junto do
que ter razão sozinho. Assim, os go-
vernos copiaram uns aos outros e
acabaram se referindo a um mesmo
modelo de difusão da pandemia. Os
economistas se contentaram em in-
vestir em fundos que copiam um ín-
dice da Bolsa, já que não têm infor-
mações pertinentes para avaliar os
ativos financeiros. Da mesma forma,
os governos desprevenidos devem
inovar com medidas que não têm
precedentes, o que acrescenta uma
segunda incerteza radical, pois nin-
guém conhece o impacto final disso.
É isso que explica em parte o cará-
ter das decisões públicas e as contra-
dições que atravessam os discursos
oficiais. A sensação de incerteza tem
uma consequência importante em
matéria de responsabilidade: quando
as estratégias reveladas mais eficien-
tes forem conhecidas, os cidadãos le-
sados por um tratamento inadequado
da pandemia poderão prestar queixa
contra a administração da saúde ou
até mesmo contra as políticas?
A decisão de quase interrupção da
economia, levando ao risco de falên-
cia das empresas mais frágeis e de
pauperização dos mais fracos, deve-
ria ser acompanhada por medidas de
apoio aos resultados das empresas e
às rendas dos trabalhadores. Na
França, o aporte maciço do Estado


rompe com o projeto de um retorno
ao equilíbrio das finanças públicas:
foram o imperativo da saúde pública
e a urgência – para não dizer o pânico


  • que justificaram essa reapreciação
    da doutrina governamental. Mas a
    esperança de uma rápida vitória so-
    bre o vírus foi desapontada, e é preci-
    so prolongar as medidas sanitárias e,
    consequentemente, o esforço orça-
    mentário. A vida humana, que pare-
    cia não ter nenhum preço, tem um
    custo. Turismo, manutenção, trans-
    porte aéreo, espetáculos: setores in-
    teiros estão próximos da falência e
    suas organizações profissionais pe-
    dem um retorno a uma atividade eco-
    nômica mais frequente. Esta não po-
    de ser como a que existia em 2019,
    pois as barreiras à propagação do ví-
    rus pesam sobre a produtividade, os
    custos e a rentabilidade.
    Logicamente, ainda que a emoção
    criada pela Covid-19 se revele durá-
    vel, a pandemia poderia marcar uma
    tomada de consciência: a busca pelo
    bem-estar deveria se tornar a pedra
    angular das sociedades. É preciso
    moderar esse prognóstico otimista,
    pois a Covid-19 não deixa o passado
    para trás. “É preciso que tudo mude
    para que nada mude”, em particular
    na distribuição do poder dentro das
    empresas e entre elas na escala inter-
    nacional. Por um lado, a Covid-19 já
    mudou muitos comportamentos e
    práticas: a estrutura do consumo re-
    gistrou os riscos das relações cara a
    cara; o trabalho se transformou em
    home office, o que permite uma des-
    conexão ao mesmo tempo temporal e
    geográfica das tarefas que produzem
    um bem ou um serviço desmateriali-
    zado; a mobilidade internacional das
    pessoas foi duramente impedida; e
    os valores em escala mundial não vão
    sair ilesos dos esforços de reconquis-
    ta de certa soberania nacional sobre a
    produção de bens reputados estraté-
    gicos. Os modos de regulação se en-
    contrarão transformados, com pouca
    chance de um retorno ao passado.
    Por outro lado, a Covid-19 acele-
    rou duas tendências observadas des-
    de a década 2010. A primeira tem a ver
    com o capitalismo de plataforma,
    centrado na exploração da informa-
    ção, qualquer que seja ela, que come-
    çou a conquistar o mundo. Com a cri-
    se sanitária, ele mostrou seu
    potencial em manter a atividade do
    comércio eletrônico graças aos seus
    algoritmos dopados pela inteligência
    artificial e à sua logística, propondo
    informações em tempo real sobre to-
    das as atividades, facilitando o traba-
    lho e o ensino a distância, exploran-
    do vias abertas em novos setores
    (veículos autônomos, exploração co-
    mercial do espaço, telemedicina,
    equipamentos médicos). Por sua vez,
    os economistas apostaram em seu


sucesso a longo prazo, em um con-
texto de declínio da economia tradi-
cional. Esse capitalismo transnacio-
nal invasivo parece ter saído ainda
mais poderoso da crise sanitária.
No entanto, ele também suscitou
sua contrapartida dialética: uma mi-
ríade de capitalismos com impulsão
do Estado que, empurrados pelos
descartados da abertura econômica,
pretendem defender as prerrogativas
do Estado-nação, incluindo no âmbi-
to econômico. À medida que os bene-
fícios da globalização iam desbotan-
do, diversos tipos de capitalismo de
Estado apareceram. Os governos
saem ideologicamente reforçados da
pandemia, que reabilitou seu papel
de protetor das fronteiras.
Esta apresentação não pode dei-
xar de suscitar uma objeção de bom
senso: como dois regimes tão opostos
podem coexistir? Olhando bem, eles
se alimentam mutuamente. A ofensi-
va das multinacionais do digital tem
como contrapartida uma desarticu-
lação dos sistemas produtivos nacio-
nais e uma polarização das socieda-
des, segundo uma linha de fratura
entre os grupos e as profissões que
prosperam com a concorrência dos
territórios e os outros, os que perdem,
cujo nível de vida estagna ou até bai-
xa. Esse é o terreno do qual se alimen-
tam os movimentos que defendem a
identidade nacional e pedem ao Esta-
do para protegê-los do grande vento
da concorrência internacional, que
eles não têm meios para enfrentar.
Paradoxalmente, a pandemia
conforta esses dois tipos de capitalis-
mo. O capitalismo transnacional da
informação controla há muito tempo
o comércio eletrônico, no qual cons-
trói a logística, e o home office. O dis-
tanciamento físico está no coração de
seu modelo produtivo, e as medidas
de confinamento lhe permitiram
conquistar rapidamente clientes, de-
senvolver novos aplicativos para a
medicina, o ensino a distância e as
reuniões de trabalho. Os economis-
tas veem na informação e na pesqui-
sa médica os raros setores que saem
mais fortes da pandemia.
No campo ideológico, os governos
qualificados como “populistas” ga-
nham terreno, já que a ameaça de um
vírus vindo de fora justifica o contro-
le das fronteiras, a defesa da sobera-
nia nacional e o reforço do Estado na
esfera econômica. O capitalismo es-
tatal não pretende concorrer com o
capitalismo transnacional, mas sim-
plesmente afirmar uma soberania
econômica, adquirida em detrimento
do nível de vida. Os governos podem
se voltar para a China para conter os
Gafam (Google, Apple, Facebook,
Amazon e Microsoft), de forma que
uma partilha do espaço mundial en-
tre duas esferas de inf luência se torne

possível, sem implicar necessaria-
mente a vitória de uma sobre a outra.

CONSTRUIR UM
NOVO COMPROMISSO
Neste clima sombrio, os conf litos so-
ciais, não ultrapassados no passado
recente, correm o risco de ressurgir,
ainda mais porque os empregos des-
truídos poderiam ser mais numero-
sos do que os criados nos setores do
futuro. No capitalismo, um regime
socioeconômico só é viável se repou-
sar em um compromisso fundador
que organiza a arquitetura institu-
cional – em particular a da relação
salarial e a da concorrência –, pilota o
acúmulo e canaliza o conf lito entre o
capital e o trabalho. A polarização
das sociedades torna o exercício ex-
tremamente difícil, mas seria ilusó-
rio pensar que medidas puramente
técnicas, por mais inovadoras que se-
jam, poderiam substituir o papel do
político na construção dos novos
compromissos.
Como seria em vão buscar uma
previsão em um determinismo de or-
dem tecnológica ou econômica, por
que não imaginar como as forças que
trabalham as sociedades pós-Co-
vid-19 poderiam chegar a configura-
ções dotadas de certa coerência?
Um primeiro futuro poderia re-
sultar de uma aliança entre as técni-
cas digitais e os avanços da biologia
para alcançar uma sociedade de vigi-
lância generalizada que institui e
possibilita uma polarização entre um
pequeno número de ricos e uma mas-
sa de sujeitos que se tornaram impo-
tentes pelo abandono do ideal
democrático.
O segundo futuro poderia resultar
do desmoronamento de tal socieda-
de. O deslocamento das relações in-
ternacionais e o fracasso do estabele-
cimento de um determinismo
biológico mostram a necessidade de
um Estado social que se torna o tutor
de uma democracia estendida à eco-
nomia. O sucesso de um número
crescente de experiências nacionais
torna novamente possível, ao final, a
construção de um regime internacio-
nal centrado nos bens públicos mun-
diais e comuns, sem os quais os regi-
mes nacionais não podem prosperar.
A história se encarregará de invalidar,
ou não, essas duas visões e de nos
surpreender, como fez a Covid-19.

*Robert Boyer é economista e autor de
Les Capitalismes à l’épreuve de la pandé-
mie [Os capitalismos à prova da pande-
mia], La Découverte, 2020, no qual este
texto se inspira.

1 Ler Frédéric Lemaire e Dominique Plihon, “Le
poison des taux d’intérêt négatifs” [O veneno
das taxas de juros negativas], Le Monde Di-
plomatique, nov. 2019.

.
Free download pdf