Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 160 (2020-11)

(Antfer) #1

NOV EMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 21


“Para nós, o Mediator é simplesmente
revelador. Ao longo de décadas, ob-
servamos que, quando os medica-
mentos começam a ser conhecidos,
sua eficácia é globalmente superesti-
mada e seus riscos são mundialmen-
te subestimados. Visto seu peso na
economia e sua grande inf luência no
mundo da saúde, as empresas farma-
cêuticas estão na origem de ensaios
enviesados, de uma promoção preci-
pitada etc. Mas elas não têm o mono-
pólio deles! Existem muitos exemplos
na história, e vivenciamos uma real
dimensão deles na primavera de



  1. Um especialista ou um grupo
    de especialistas pode ter uma convic-
    ção e virar as coisas do lado avesso,
    decidindo que os dados estarão de
    acordo com sua convicção”, declara
    Toussaint. Desde o início de abril, a
    Prescrire recomendou prudência: “Os
    resultados observados em Marselha
    não permitem validar nem excluir o
    interesse de um tratamento particu-
    lar”. Antes do final de julho: “a balan-
    ça benefício-risco parece cada vez
    mais claramente desfavorável”.


UMA DERIVA SISTÊMICA
Para a opinião pública, a imagem da
“Big Pharma” continua deplorável. As
empresas farmacêuticas se preocu-
pam bastante com isso, a ponto de fi-
nanciar um “Observatório Societal
do Medicamento”. A última pesquisa
da entidade é eloquente. Somente
uma minoria de pessoas entrevista-
das (16%) não tem confiança em seus
produtos, mas essa proporção do-
brou em oito anos, e dois terços não
confiam nas empresas farmacêuticas
“em matéria de informação sobre os
medicamentos”.^7 No entanto, elas
não economizam o dinheiro que des-
tinam à propaganda ou à sedução de
médicos e especialistas...
“O mundo da saúde está ligado de
forma sistêmica aos interesses indus-
triais, desde a pesquisa, a formação
dos enfermeiros, a expertise regula-
mentar, até as práticas dos médicos e a
informação ao público. Esse conjunto
de vínculos de interesses inf luencia os
tratamentos, e essa inf luência tem um
risco tanto para a saúde pública como
para o equilíbrio das contas sociais.
Ele constitui uma perda de oportuni-
dade para os pacientes”.^8 Ao tirar li-
ções dessa crise, a Association pour
une Information et une Formation
Médicale Indépendantes (Formindep,
Associação para uma Informação e
uma Formação Médica Independen-
tes) lembrou que não se pode mais
deixar de levar em conta essas ques-
tões e sua dimensão política.
Essa associação reúne profissio-
nais da saúde e cidadãos preocupa-
dos em alertar sobre as formas visí-
veis e invisíveis de inf luência da
indústria. “São ainda muito poucos


os professores que declaram seus
vínculos de interesses no início de
seus cursos, que abordam esses as-
suntos ou tomam iniciativas proati-
vas para preparar melhor seus estu-
dantes”, lamenta seu presidente, Paul
Scheffer. A associação ajudou a Trou-
pe du R.I.R.E. (Rede de Iniciativas e
Reações Estudantis), um coletivo de
estudantes de medicina, a produzir
um livrinho que explica de forma de-
talhada os métodos de inf luência da
indústria, a fim de ensinar a escapar
deles.^9 A Formindep também salien-
tou os “esforços raros e tímidos” dos
Centres Hospitaliers Universitaires
(CHU, Centros de Hospitais Universi-
tários) franceses, dos quais ela esta-
beleceu uma classificação em função
de sua política de prevenção dos con-
flitos de interesses.^10 Ela publicará,
também em janeiro de 2021, sua ter-
ceira classificação das faculdades de
medicina de acordo com sua inde-
pendência. Somente uma (a Univer-
sidade de Tours) obteve a média na
classificação anterior, que mediu o
grau de aplicação da Constituição
Ética e Deontológica adotada em 2017
pelos Congressos Nacionais de Deca-
nos de Medicina e Odontologia.
A Formindep age também na jus-
tiça para fazer respeitar acordos pro-
metidos, mas raramente cumpridos.
Em 2011, por exemplo, o Conselho de
Estado ordenou à HAS suprimir uma
recomendação sobre o tratamento
da diabetes. A autoridade “indepen-
dente” não teve “condições de incor-
porar ao dossiê a integralidade das
declarações de interesses cujo cum-
primento era obrigatório”.^11 Vá r ios
membros do grupo de trabalho esta-
vam em conf lito de interesses f la-
grante, pois eram ligados a empresas
que intervinham na responsabiliza-
ção por essa doença.
Demonstrar sua independência e
sua autoridade não é uma tarefa fácil
para a atual presidente da HAS, de
quem uma das missões principais é
avaliar o “serviço médico prestado”
pelos produtos autorizados pela
Agence Européenne du Médicament
(Agência Europeia de Medicamentos)
antes de seu possível reembolso aos
pacientes.^12 Ela sucedeu a Agnès Bu-
zyn quando esta foi para o governo,
em 2017. A ex-ministra da Saúde ti-
nha sucedido a Jean-Luc Harousseau,
ex-presidente (partido União por um
Movimento Popular – UMP) do con-
selho regional do Pays de la Loire e
que se tornou, em 2019, presidente da
Fondation des Entreprises du Médi-
cament [Fundação das Empresas de
Medicamentos]! “Os profissionais da
saúde compreenderam a importân-
cia das declarações de interesses. Is-
so requer tempo, trata-se de uma
aculturação. Essa cultura se adquire
com o tempo”, assegura Le Guludec.

UMA TRANSPARÊNCIA INCOMPLETA
A lei “antipresentes” de 1993 foi refor-
çada em 2011 após a questão do Me-
diator. Os vínculos contratuais e fi-
nanceiros entre as empresas e os
profissionais devem ser publicados
em um único site, público. Mas vá-
rios anos se passaram antes que o site
Transparence Santé^13 mostrasse os
primeiros montantes, e de maneira
muito pouco legível. Graças a um co-
letivo voluntário, o site EurosForDo-
cs^14 permite atualmente que se tenha
uma ideia mais clara das vantagens,
acordos e remunerações desde 2012.
São 144 milhões de declarações deta-
lhadas, representando mais de 6 bi-
lhões de euros. Os jornalistas utiliza-
ram esses dados. Em janeiro de 2020,
por exemplo, um grupo de uma deze-
na de jornais regionais revelou os
vínculos de interesses dos principais
CHU. Em Clermont-Ferrand, um pro-
fessor “recebe mais de 120 mil” sem o
conhecimento de seu estabelecimen-
to, salienta La Montagne.^15 Ele teve de
pedir demissão.
A perseverança da Formindep le-
va a administração a aplicar seus
próprios textos. Mas a transparência
permanece incompleta: mais de 3
milhões de contratos continuam re-
gistrados sem que seus montantes
apareçam. A Cour des Comptes [se-
melhante ao Tribunal de Contas no
Brasil (N.T.)] observa: “A análise dos
acordos entre médicos e indústria,
até 2018, era extremamente inope-
rante [...]. Nenhum médico foi con-
vocado pelo Conselho Nacional e
não foi feita nenhuma acusação dis-
ciplinar por desrespeito a uma ad-
vertência sobre um contrato irregu-
l a r ”.^16 Um novo dispositivo
antipresentes previsto pelos textos
“para no mais tardar 1º de julho de
2018” entrou em vigor em 1º de outu-
bro de 2020. Ele reforça as proibi-
ções, reduz os limites que definem
um “presente” (30 euros por uma re-
feição, 150 euros por um abono etc.)
e dá um papel mais importante para
as ordens profissionais, que deverão
autorizar os acordos.
Todavia, esses dispositivos suces-
sivos tropeçam na ausência de san-
ção. “A dificuldade jurídica está liga-
da principalmente ao fato de um
conf lito de interesses não ser uma in-
fração penal. E os casos que permi-
tem fazer uso da reprimenda para
conf lito de interesses são bastante li-
mitados. No quadro de uma prescri-
ção médica, por exemplo, é muito di-
fícil provar que, se um médico
recomenda um medicamento que
não é o mais barato ou o mais ade-
quado, é porque ele está ligado ao fa-
bricante”, explica Farah Zaoui, res-
ponsável pela expertise jurídica na
associação Anticor. Essa associação
de luta contra a corrupção, da mesma

maneira, lamentou a “apreensão ile-
gal de interesses” e, em 2018, redigiu
uma recomendação da HAS. Esta te-
ria levado ao tratamento de metade
dos franceses de mais de 60 anos de
idade com estatina sob o pretexto de
prevenir um risco cardiovascular...
Suas declarações públicas de interes-
ses se revelaram mais do que incom-
pletas. Embora a HAS tenha retirado
essa recomendação logo após um no-
vo recurso da Formindep dirigido ao
Conselho de Estado, a informação ju-
dicial, confiada a um juiz em novem-
bro de 2019, ainda não deu lugar a ne-
nhuma intimação. “Ainda não
tínhamos todos os instrumentos de
transparência. Desde então, revimos
as declarações públicas de interesses
de todos os grupos de trabalho da-
quele período”, explica Le Guludec.

DO VÍNCULO AO CONFLITO
DE INTERESSES
A doutrina estabelece uma nítida dis-
tinção entre os vínculos de interesses


  • autorizados – e os conf litos de inte-
    resses – proscritos. A argumentação
    encontra-se no regulamento interno
    do Conselho Científico: “Um conf lito
    de interesses nasce de uma situação
    em que os vínculos de interesses de
    um especialista são suscetíveis, por
    sua natureza ou sua intensidade, de
    colocar em questão sua imparciali-
    dade ou sua independência no exer-
    cício de sua missão de expertise em
    relação ao que vai ser tratado”. Ex-di-
    retora de redação da prestigiada re-
    vista New England Journal of Medici-
    ne, Marcia Angell criticou em 2009
    esse tipo de raciocínio: “Parece haver
    uma vontade de eliminar o cheiro da
    corrupção e, ao mesmo tempo, con-
    servar o dinheiro. Romper a depen-
    dência da profissão médica relativa à
    indústria farmacêutica demandará
    mais que a nomeação de comitês e
    outros gestos. Será preciso uma níti-
    da ruptura com um comportamento
    extremamente lucrativo”.^17
    A indústria sabe jogar com rivali-
    dades pecuniárias entre médicos. Ela
    tem como alvo os líderes de opinião,
    em primeiro lugar os especialistas e
    os professores universitários que
    exercem a medicina em hospitais
    (PU-PH), que trabalham no serviço
    público. Um PU-PH que não seja pro-
    fissional liberal inicia sua carreira
    ganhando cerca de 6.400 euros líqui-
    dos por mês e a termina com um sa-
    lário de 10.500 euros líquidos, sem
    contar diversos benefícios e a remu-
    neração dos plantões.^18 Mas seus co-
    legas das clínicas ou os que têm uma
    atividade liberal no próprio hospital
    ganham muito mais.
    Bruno Toussaint se tornou peda-
    gogo: “Uma vez no exercício profis-
    sional, no cuidado ou na redação
    científica, no ensino, na participação


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