Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

(Antfer) #1

DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 19


xos lá. Vale mais a pena buscar uma
coexistência pacífica com os fabri-
cantes de genéricos, especialmente
nesses mercados em que as inova-
ções são raras, ao contrário dos paí-
ses ocidentais, onde há maiores mar-
gens de lucros.” Por meio de suas
fundações corporativas, essas com-
panhias cooperam com associações
locais para melhorar o acesso da po-
pulação à saúde.


RESISTÊNCIA DOS
PRODUTOS ESTRANGEIROS
As multinacionais, porém, não aban-
donam o mercado. Elas tentam ga-
nhar no volume de vendas de produ-
tos que só elas são capazes de fabricar
em quantidade suficiente: é o caso da
suíça Novartis, por meio da subsidiá-
ria Sandoz, ou da norte-americana
Pfizer, em processo de fusão com a
compatriota Mylan, ou ainda da fran-
cesa Servier, com a subsidiária Bioga-
ran, na África ocidental. A gigante
chinesa Fosun Pharma, por sua vez,
aguarda a certificação da OMS para
sua futura unidade de genéricos de
US$ 75 milhões na Costa do Marfim.
As patentes de tratamentos para
doenças não infecciosas continuam
nas mãos das multinacionais, que as
cedem a conta-gotas para os genéri-
cos. Com especialistas e amplos re-
cursos, elas monitoram a evolução
das leis de propriedade intelectual. O
objetivo seria retardar o surgimento
de uma verdadeira indústria farma-
cêutica local, contornando, com
cláusulas restritivas, o sistema de li-
cenças voluntárias que autorizam a
produção de genéricos de medica-
mentos patenteados. Foi nesse espíri-
to que, em 2014-2015, a gigante norte-
-americana Gilead licenciou onze
genéricos indianos para distribuir
seu tratamento para hepatite C em
uma centena de países.
Os governos da África do Sul e da
Nigéria são os únicos a oferecer aos
fabricantes locais um regime fiscal
vantajoso. No Quênia, associações de
pacientes pedem tais incentivos, bem
como a tributação de medicamentos
importados. Hoje, o país produz ape-
nas 28% de seu consumo. “Tenho a
sensação de que, entre a falta de
transparência dos países africanos e
a inf luência dos produtores estran-
geiros que não querem perder merca-
do, os ventos não são favoráveis ao
desenvolvimento de uma indústria
nacional”, observa em Nairóbi Allan
Maleche, da associação queniana Ke-
lin, que defende os direitos de pa-
cientes com aids e tuberculose.
Com um mercado farmacêutico
em plena expansão, a África produz
tratamentos acessíveis para algu-
mas doenças infecciosas, como a
aids.^16 Agora, precisa garantir a fa-
bricação de quantidades suficientes


e enfrentar o desafio das patologias
não infecciosas. As empresas estran-
geiras não pretendem deixar de lado
esse mercado em rápido crescimen-
to. Em Kampala, a indiana Cipla se
prepara para construir uma fábrica
dedicada exclusivamente ao trata-
mento do câncer.

*Séverine Charon e Laurence Soustras
são jornalistas.

1 “Alerte produit médical n.4/2020” [Alerta de
produto médico n. 4/2020], OMS, Genebra,
9 abr. 2020.
2 Idem.
3 “Statistiques sanitaires mondiales” [Estatísti-
cas mundiais de saúde], OMS, 2014.
4 Ler o suplemento “La santé pour tous, un défi
planétaire” [Saúde para todos, um desafio
planetário], Le Monde Diplomatique, jul.
2019.
5 “Amendment in export policy of hydroxychloro-
quine” [Emenda na política de exportação de
hidroxicloroquina], Governo da Índia, Nova
Délhi, 18 jun. 2020.
6 Antonin Tisseron, “Circulation et commerciali-
sation de chloroquine en Afrique de l’Ouest:
une géopolitique du médicament à la lumière
du Covid-19” [Circulação e comercialização
de cloroquina na África ocidental: uma geopo-
lítica do medicamento à luz da Covid-19], Ins-
tituto Francês de Relações Internacionais,
Paris, 3 jul. 2020.
7 “Le médicament en Afrique: répondre aux en-
jeux d’accessibilité et de qualité” [Remédios
na África: enfrentando os desafios da acessi-
bilidade e da qualidade], Société de Promo-
tion et de Participation pour la Coopération
Économique (Proparco), dez. 2017. Disponí-
vel em: http://www.proparco.fr.
8 “Global Monitoring Report on Financial Pro-
tection in Health 2019” [Relatório de monito-
ramento global da proteção financeira da saú-
de 2019], OMS – Banco Mundial, Genebra


  • Washington, DC, 2019.
    9 Ler Frédéric Le Marcis, “Les maladies du Nord
    migrent en Afrique” [Doenças do Norte mi-
    gram para a África], Le Monde Diplomatique,
    mar. 2017.
    10 “Le médicament en Afrique”, op. cit.
    11 Michael Conway, Tania Holt, Adam Sabow e
    Irene Yuan Sun, “Should Sub-sahara Africa
    make its own drugs?” [A África subsaariana
    deveria produzir seus próprios remédios?],
    McKinsey and Company, 10 jan. 2019. Dispo-
    nível em: http://www.mckinsey.com.
    12 “Bonnes pratiques de fabrication des produits
    pharmaceutiques: grands principes” [Boas
    práticas de fabricação de produtos farmacêu-
    ticos: grandes princípios], OMS, 2014. Dis-
    ponível em: http://www.who.int.
    13 Ler Philippe Rivière, “Après Pretoria, quelle
    politique contre le sida? ” [Depois de Pretória,
    qual política contra a aids?], La Valise Diplo-
    matique, 20 abr. 2001. Disponível em: http://www.
    monde-diplomatique.fr.
    14 Angola, Benin, Burkina Faso, Burundi, Chade,
    Djibouti, Eritreia, Etiópia, Gâmbia, Guiné,
    Guiné-Bissau, Lesoto, Libéria, Madagascar,
    Malawi, Mali, Mauritânia, Moçambique, Níger,
    República Centro-Africana, República Demo-
    crática do Congo, Ruanda, Senegal, Serra
    Leoa, Somália, Sudão, Sudão do Sul, Tanzâ-
    nia, Togo, Uganda e Zâmbia (Fonte: Confe-
    rência das Nações Unidas sobre o Comércio
    e o Desenvolvimento).
    15 “Why Kenyan manufacturers are walking a
    tightrope” [Por que os fabricantes quenianos
    estão na corda bamba], Business Daily, Nairó-
    bi, 28 out. 2018.
    16 Assefa Yibeltal, Peter S. Hill e Owain D. Wil-
    liams, “Access to hepatite C virus treatment:
    lessons from implementation of strategies of
    increasing access to antiretroviral treatment”
    [Acesso ao tratamento do vírus da hepatite C:
    lições da implementação de estratégias para
    aumentar o acesso ao tratamento antirretrovi-
    ral], International Journal of Infectious Disea-
    ses, v.70, Aarhus (Dinamarca), maio 2018.


A BATALHA DO PREÇO

E


m muitos países de renda baixa ou média, especialmente os africanos, os medica-
mentos custam de vinte a trinta vezes o preço internacional de referência para
genéricos. É o caso de produtos básicos como o paracetamol.^1 Isso se deve à falta de
coerência e de eficácia dos sistemas de saúde, mas também a uma demanda desor-
ganizada, a dificuldades logísticas e a uma cadeia de abastecimento concentrada que
negligencia as zonas rurais.
Associações como Médicos Sem Fronteiras (MSF) também questionam a políti-
ca de preços praticada pelas companhias farmacêuticas. A associação pede, por
exemplo, o fornecimento de bedaquilina, medicamento fabricado pela multinacional
Johnson & Johnson, ao preço de US$ 1 por dia (US$ 180 por seis meses). Em paí-
ses de renda baixa e média, esse medicamento contra tuberculose, vendido a US$
400 por seis meses, está de fato “fora do alcance de 80% das pessoas que preci-
sam dele para sobreviver”.^2 Em julho, a Johnson & Johnson chegou à metade do
caminho, aceitando comercializá-lo por US$ 1,50 ao dia. Segundo a MSF, o preço
deve refletir a parcela dos subsídios concedidos à pesquisa e ao desenvolvimento,
bem como o papel da comunidade científica e de organizações ligadas ao combate
à tuberculose resistente.
A distribuição de medicamentos no setor privado (80% do abastecimento em paí-
ses de renda média) é feita de forma diferente nos países de colonização francesa e
naqueles de colonização inglesa. No primeiro caso, o preço de venda é administrado.
Como na França, a circulação dos produtos é garantida por distribuidores atacadistas,
que se abastecem junto aos fabricantes e devem oferecer às farmácias, com muita
regularidade, toda a farmacopeia autorizada. Já nos países de colonização inglesa, os
laboratórios escolhem um agente, o único autorizado a importar os medicamentos,
que depois são revendidos a uma infinidade de empresas, que por sua vez os vendem
aos varejistas – que não necessariamente precisam ser farmácias. “Na África de lín-
gua francesa, como na França, uma caixa de remédios prescritos tem o mesmo preço
em todo o território. Na África de língua inglesa, os preços são livres”, explica Jean-
-Marc Leccia, presidente da Eurapharma, distribuidora francesa – tornada subsidiária
da japonesa Toyota – que controla 40% da rede de distribuição da África ocidental.
A liberalização de preços tem menos impacto onde as doações respondem por
metade de todos os gastos do setor público com saúde. Esse é o caso dos 24 países
de renda baixa da África subsaariana. O Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose
e Malária (que gasta pelo menos US$ 1 bilhão por ano na compra de produtos de
saúde) atua como um poderoso centro de compras, capaz de negociar simultanea-
mente com os oito fornecedores que dividem o mercado. Mas, mesmo entre industriais
e grandes organizações humanitárias, as negociações são difíceis: os laboratórios li-
mitam-se a suas margens, portanto a seus volumes. Para eles, os tratamentos menos
utilizados – como o HIV pediátrico (em razão do declínio da doença entre as mães,
portanto também entre as crianças) ou a combinação do antimalárico artesunato com
a mefloquina (necessária apenas no Vale do Mekong) – só têm interesse se os preços
forem elevados.
Mesmo quando há demanda, ela não determina necessariamente os preços prati-
cados. “A lógica de definição de preço por parte do fabricante não tem nada a ver com
o número de pessoas que precisam do produto”, lamenta Gaëlle Krikorian, encarregada
do programa de acesso a medicamentos da MSF. “Ela remete a uma espécie de pere-
quação entre a população que tem renda suficiente na população total e o tipo de preço
que é possível estabelecer.” Dessa forma, por meio de um hábil jogo de licenças, a gi-
gante farmacêutica Gilead optou por comercializar seu tratamento contra a hepatite C
por milhares de euros em países de renda média como o Marrocos, onde ele só é aces-
sível para uma fração das centenas de milhares de pessoas doentes. Os tratamentos
antigos, fáceis de produzir e menos lucrativos, são evitados pelos laboratórios, inclusive
os genéricos: é o caso da penicilina e dos analgésicos, totalmente negligenciados em
grande parte dos países africanos mais pobres. A morfina, que sofre controle interna-
cional mas é de produção muito barata em sua forma oral, é quase impossível de en-
contrar em grande parte do continente, ao contrário da forma injetável importada, que
é mais cara e está disponível no mercado privado.
Em maio de 2019, a Assembleia Mundial da Saúde aprovou uma resolução pedin-
do transparência nos preços pagos por governos e compradores de produtos de saú-
de, bem como nos ensaios clínicos.^3 “Uma coalizão muito interessante de países do
Norte e do Sul, juntos, para dizer: ‘Precisamos de transparência; queremos saber
quanto pagamos, quem paga o quê e quanto cada coisa custa’”, comenta Gaëlle Kri-
korian. Com o apoio de associações, África do Sul e Uganda fizeram campanha em
favor da resolução, enquanto Alemanha (que propôs 25 emendas) e Reino Unido se
opuseram a ela. (S.C. e L.S.)

1 Rachel Silverman, Janeen Madan Keller, Amanda Glassman e Kalipso Chalkidou,
“Tackling the triple transition in global health procurement” [Enfrentando a tripla
transição no abastecimento global de saúde], Center for Global Development,
Washington, DC/Londres, 17 jun. 2019. Disponível em: http://www.cgdev.org.
2 “J&J doit rendre les médicaments antituberculeux disponibles pour tous à 1 dollar
par jour” [J&J deve disponibilizar medicamentos contra tuberculose para todos por
1 dólar ao dia], Médicos Sem Fronteiras, Paris, 26 abr. 2019.
3 “Assemblée mondiale de la santé – Actualités du 28 mai 2019 – Journée de clôture”
[Assembleia Mundial da Saúde – Atualização em 28 de maio de 2019 – Dia de
encerramento], Organização Mundial da Saúde, Genebra, 28 maio 2018.

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