Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

(Antfer) #1

2 Le Monde Diplomatique Brasil^ DEZEMBRO 2020


EDITORIAL


A implosão do


sistema político


POR SILVIO CACCIA BAVA

É


voz corrente que o desencanto e
a frustração marcam o momen-
to histórico que vivemos. O sis-
tema político do país é mal ava-
liado pelos brasileiros e brasileiras,
mas essas posturas podem estar mu-
dando se olharmos para os resultados
das eleições municipais deste ano.
Os últimos dados das pesquisas
do Latinobarómetro, de 2018, dizem
que o apoio à democracia por parte
dos brasileiros e brasileiras é de 34%.
Os indiferentes somam 41%. E os que
preferem o autoritarismo são 15%.
Caem os que apoiam a democracia,
sobe o número dos indiferentes. Os
que preferem o autoritarismo perma-
necem estáveis. A aprovação do go-
verno em 2018 é de 6%. A do Congres-
so Nacional é de 12%. A aprovação
dos partidos políticos é de 6%.^1 Bol-
sonaro é expressão deste momento.
De que vale votar se o controle da
política permanece com os podero-
sos? Depois das eleições de 2018,
aprofundou-se a espoliação das
maiorias e, com isso, a descrença na
política e no sistema político. A Plata-
forma dos Movimentos Sociais pela
Reforma do Sistema Político^2 – uma
coalizão de movimentos sociais e
ONGs que há anos se engaja na luta
pela reforma de nosso sistema políti-
co – abandonou a ideia de uma refor-
ma, não acredita mais nessa possibi-
lidade, e passou a defender a implosão
do atual sistema político, de fora para
dentro. O que quer dizer isso?
Trata-se de um embate contra
uma política gerada e gerida pelas
elites, que sustenta e se apoia num
sistema político burocrático, sem ne-
nhuma participação popular e que
aprofunda as desigualdades imple-
mentando políticas públicas de ex-
clusão social, espoliação das maio-
rias e concentração das riquezas
produzidas nas mãos de muito pou-
cos. Não há reforma possível quando
Executivo, Legislativo e Judiciário se
alinham com esses objetivos, mesmo
contrariando nossa Constituição.
Acontece que o desencanto não é
pela política ou pela democracia. É
por essa política e por essa democra-
cia. O próprio desencanto é fruto de
uma política cujo resultado esperado
é a desmobilização da cidadania.
O povo da Bolívia acaba de pro-
mover a implosão de seu sistema po-

lítico de dominação das maiorias. E
o Chile caminha para isso, com a
aprovação de um processo consti-
tuinte independente do Congresso
que tem hoje.
É importante acompanhar o que
acontece na Bolívia, processo muito
pouco conhecido no Brasil, na ver-
dade censurado por nossa grande
imprensa.
Desde 2005, o partido Movimien-
to Al Socialismo (MAS) governa a Bo-
lívia com amplo respaldo popular.
Fundado em 1997, ele chegou ao po-
der em 2005, elegendo Evo Morales
com 54% dos votos. Em 2009, reele-
geu Evo com 64% dos votos. Em 2014,
com 61% dos votos. Em 2019, Evo ga-
nhou novamente as eleições, mas viu
contestada sua legitimidade e sofreu
um golpe de Estado, sendo afastado
do poder, que foi assumido pela opo-
sição, liderada pelas oligarquias lo-
cais e apoiada internacionalmente
por vários Estados e mesmo pela
OEA. Mais um golpe na América Lati-
na tentando destruir governos popu-
lares e democráticos.
Com seus erros e acertos, o MAS
trouxe uma efetiva melhora nas con-
dições de vida das maiorias e abriu
espaço para a elaboração de uma no-
va Constituição pluricultural e pluri-
nacional, reconhecendo e valorizan-
do as formas de organização dos
pueblos originários, e criando um
novo modelo de democracia, que
combina a representação com a de-
mocracia participativa.
O golpe foi sentido pela maioria
da população, que amadureceu for-
mas de resistência e, pela via da pres-
são, exigiu a realização de eleições. A
pressão foi contínua e, depois de dois
adiamentos, finalmente a eleição foi
marcada para 18 de outubro. O cená-
rio era ou de eleições democráticas,
ou de convulsão social.
Em 28 de julho, a Central Obrera
Boliviana, a Federação dos Mineiros
e as organizações de camponeses de-
cretaram uma greve geral com prazo
indefinido e decidiram também pelo
bloqueio das estradas. Mais de du-
zentos bloqueios se realizaram. A
exigência era de eleições limpas e
democráticas.
Com 55,2% dos votos, o candidato
do MAS, Luis Arce, se elegeu. Seu opo-
nente teve 28,9% dos votos. A vitória

do MAS em 2020 não pode ser vista
apenas como uma vitória eleitoral; é
uma vitória política e social que vai
além desse partido. Ela expressa uma
nova vontade política, que se opõe ao
modelo neoliberal. É uma vitória de
classe, de gênero, de geração, de terri-
tório, de cultura, como afirmam ana-
listas do processo eleitoral^3.
Na Câmara dos Deputados, o
MAS conta com 75 de 130 deputados;
87 são mulheres. A maioria dos depu-
tados eleitos são jovens de 22 a 27
anos – uma verdadeira renovação da
classe política. No Senado, elegeu 21
dos 36 senadores. Dos eleitos, 55,5%
são mulheres. Trata-se de uma ver-
dadeira implosão do sistema político
até então existente. E o caminho
apontado pelos analistas é a passa-
gem da democracia representativa
para a democracia participativa, na
perspectiva de construir a democra-
cia comunitária.
No Brasil, a implosão do sistema
político, que necessariamente ocorre
de fora para dentro, ainda não acon-
teceu. Mas sinais de que as coisas vão
mudando e podem mudar mais estão
nos resultados dessa última eleição.
Coletivos e representantes das lutas
antirracistas, feministas, contra a ho-
mofobia, pelo direito à moradia, pelo
direito à cidade passaram a estar mais

presentes nos legislativos municipais.
Serão muitas Marielles convocando a
cidadania a defender seus direitos e
não se subjugar a instituições que até
hoje ignoram suas demandas.
Outro indicativo dessas mudan-
ças é que nessas eleições a luta contra
o racismo conquistou um espaço
mais expressivo nas instituições polí-
ticas. Considerando todas as capitais,
48% das vereadoras eleitas são ne-
gras e 44% dos vereadores eleitos são
negros. Mais de quinhentos quilom-
bolas se candidataram e levaram pa-
ra o espaço público sua agenda, a de-
fesa de seus direitos. Um se elegeu
prefeito de Cavalcante, em Goiás; ou-
tro, vice-prefeito; e 54 se elegeram ve-
readores em várias cidades do país.
Os povos indígenas também elege-
ram representantes. Por exemplo, os
Kaingang elegeram onze vereadores
nos estados do Rio Grande do Sul, Pa-
raná e Santa Catarina. Em Mato
Grosso do Sul, os Terena e Guarani
elegeram dez vereadores. Ainda não é
a implosão de nosso sistema político,
mas novas vozes trazem uma nova
agenda a ele.

1 Corporación Latinobarómetro, Informe 2018.
2 https://reformapolitica.org.br.
3 Ver debate promovido por Brasil de Fato, no
dia 11 de novembro de 2020, na TV 247. Dis-
ponível em: https://youtu.be/Wd89rxwDDoA.

© Claudius

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