Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

(Antfer) #1

DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 3


ELEIÇÕES NOS ESTADOS UNIDOS


A amarga vitória


democrata


A


maioria dos ativistas democra-
tas ficou muito decepcionada
em 3 de novembro, noite em
que seu candidato venceu a
eleição presidencial norte-america-
na. Para eles, quase nada saiu como
planejado. É certo que Donald Trump
perdeu, mas por pouco, já que algu-
mas dezenas de milhares de votos
adicionais em um punhado de esta-
dos (Geórgia, Wisconsin, Arizona,
Pensilvânia) teriam bastado para que
o atual ocupante da Casa Branca per-
manecesse lá por mais quatro anos.
Esse resultado apertado o encoraja a
reclamar de fraude, enquanto seus
apoiadores mais exaltados atacam
máquinas de votação cujo software,
projetado na Venezuela para Hugo
Chávez, permitiria distorcer à vonta-
de os resultados. O espetáculo do ex-
-prefeito de Nova York Rudolph Giu-
liani, advogado pessoal do presidente
dos Estados Unidos, enxugando a
testa enquanto essas acusações bi-
zarras eram feitas com seu aval, dá a
medida daquilo em que se transfor-
mou a política norte-americana.
Mais preocupante e mais sério
para Joe Biden: 77% dos republicanos
consideram que sua eleição não é le-
gítima.^1 No dia 20 de janeiro, o presi-
dente eleito precisará enfrentar essa
desconfiança quando seu partido
não terá maioria no Senado e terá
perdido dez cadeiras na Câmara dos
Deputados e estagnado nas assem-
bleias dos estados. Isso equivale a di-
zer que esse mandato democrata não
terá nenhuma lua de mel e que come-
ça muito pior que aquele de Barack
Obama, iniciado há doze anos, do
qual, entretanto, não resta grande
coisa, exceto magníficos discursos e
Memórias em dois volumes. A eleição
de Obama não foi contestada, ele fa-
zia o mundo todo sonhar e tinha am-
pla maioria em ambas as câmaras.
Ele também se mostrava muito mais
vigoroso e trinta anos mais jovem
que o “Joe Adormecido” hoje.
Paradoxalmente, é, portanto, no
campo dos perdedores que o futuro


parece mais promissor. Os adversá-
rios de Trump imaginavam que sua
eleição há quatro anos era o resulta-
do de um incrível acaso eleitoral,
que expressava o último suspiro (ou
o último soluço) do homem branco e
que sua coalizão, em que se justapu-
nham segmentos em declínio do
eleitorado – religioso, rural, idoso –,
estava condenada. Por outro lado, o
mapa demográfico tornava irresistí-
vel uma vingança democrata apoia-
da por uma maioria “diversificada”,

© Gayatri Malhotra/Unsplash

jovem e multiétnica. Esse futuro não
está mais escrito. Reconfortado em
suas bases, conquistando suas mar-
gens, o republicanismo ao estilo de
Trump não está prestes a sair de ce-
na. O presidente que vai deixar o
cargo transformou o partido do qual
se apossou; ele é doravante o seu, ou
de seu clã, ou dos herdeiros que ele
terá designado.
Para os democratas, a decepção é
imensa. Uma forma de prostração e
de desmobilização poderia muito

bem se seguir. Com mais de 200 mil
mortes por Covid-19, uma economia
paralisada, desemprego crescente,
uma taxa de popularidade presiden-
cial que, ao contrário de todos os seus
antecessores, nunca em quatro anos
ultrapassou 50% e uma lista de men-
tiras e insultos públicos capaz de en-
cher vários grossos volumes, a derro-
ta do presidente que deixa o cargo
parecia assegurada. Especialmente
porque a todos esses fatores se junta-
vam a cortina de fogo de quase todos
os meios de comunicação, financia-
mentos eleitorais inferiores ao do
concorrente democrata (algo bizarro
tendo em vista que o republicano ofe-
receu generosos presentes fiscais a
bilionários), sem mencionar o apoio
compacto de quase todas as elites do
país – artistas, generais, acadêmicos
de esquerda e inclusive o dono da
Amazon – a Biden.
Em 3 de novembro, os democra-
tas não estavam apenas esperando
uma vitória, mas uma punição. Eles
achavam que, como em 1980, a der-
rota do presidente seria homologada
antes mesmo que os californianos
terminassem de votar e, para que a
humilhação da sagrada América
progressista fosse realmente pur-
gada, o desastre prometido aos repu-
blicanos seria seguido – como ouvi-
mos ser exigido – pelo encarcera-
mento da família Trump, se possível
retratada em uniforme laranja. Esse
cenário permanecerá imaginário. É
até provável que o jogador de golfe
de Mar-a-Lago não fique politica-
mente inativo por muito tempo.
Forte por ter obtido 10 milhões de
votos a mais que há quatro anos,
apesar de todas as afrontas de que
foi alvo, incluindo uma tentativa de
impeachment, ele sem dúvida con-
seguirá convencer seus partidários
de que foi um presidente corajoso,
que cumpriu suas promessas e
ampliou a base social de seu partido,
mas cujo balanço lisonjeiro foi obs-
curecido por uma pandemia.
O fervor de alguns é fortalecido
pela rejeição de outros. A “verdade al-
ternativa” dos republicanos mais
exaltados é ainda menos duvidosa
quando se pensa que o universo pa-
ralelo dos democratas apresenta cer-
tas falhas semelhantes. Pois como
pode um apoiador de Trump se reco-
nhecer no retrato que a maior parte
dos meios de comunicação, além da-
queles que ele frequenta, oferece de
seu campeão? Muitos dos eleitores de
Biden, especialmente os graduados,
os urbanos, aqueles que definem o
tom, o ritmo e a linha, de fato se con-
venceram de que o presidente que es-
tá saindo é um palhaço, um fascista,
“o poodle de Putin”, até mesmo o su-
cessor de Adolf Hitler. Em 23 de se-
tembro, sem ser contestado pelo fa-

As primeiras escolhas de Joe Biden para postos-chave de sua administração (Relações


Exteriores, Finanças, Meio Ambiente) ameaçam decepcionar quem espera mudanças


profundas na Casa Branca. Entretanto, mesmo uma política pouco ambiciosa enfrentará


muita resistência de um Partido Republicano que não sofreu a derrota que se esperava


POR SERGE HALIMI*


Mulher comemora a vitória de Biden nas eleições, em frente à Casa Branca

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