Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

(Antfer) #1

20 Le Monde Diplomatique Brasil^ DEZEMBRO 2020


ÁRABES DIVIDIDOS SOBRE A QUESTÃO PALESTINA


Rompendo com a política de isolamento e boicote a Israel que prevalecia na região havia
mais de cinquenta anos, os Emirados Árabes e o Bahrein assinaram um acordo de
reconhecimento mútuo com Tel Aviv no dia 15 de setembro. Enquanto a Arábia Saudita
reluta em dar esse passo, outros países árabes estão sendo encorajados pelos Estados
Unidos a também se envolver na normalização

POR AKRAM BELKAÏD*

A lua de mel entre os


países do Golfo e Israel


E


m 23 de outubro, após vários
meses de discussões e de me-
diação norte-americana, Israel
e Sudão concordaram em esta-
belecer relações diplomáticas.^1 Esse
entendimento sucedeu àqueles al-
cançados entre Tel Aviv e duas mo-
narquias do Golfo, os Emirados Ára-
bes Unidos (EAU) e o Bahrein, com a
assinatura dos Acordos de Abraham
em 15 de setembro. Em poucas sema-
nas, três membros da Liga dos Esta-
dos Árabes, juntando-se ao Egito
(1978) e à Jordânia (1994), quebraram
o tabu do tatbi’, quer dizer, a normali-
zação com Israel, e abandonaram a
mou qat a’a, ou seja, seu boicote. A
aproximação entre Tel Aviv e Cartum
é um símbolo ainda mais forte por-
que foi na capital sudanesa que, em
1º de setembro de 1967, foi constituí-

da uma “frente de recusa” de nove
países^2 pedindo a continuação da lu-
ta contra Israel para recuperar os ter-
ritórios perdidos durante a Guerra
dos Seis Dias (5 a 10 de junho de
1967). Os três “nãos” que moldaram
as relações árabe-israelenses até o
fim da década de 1970 foram então
proclamados ali: “não” à paz com Is-
rael, “não” ao seu reconhecimento e
“não” às negociações.
A tripla normalização dessas úl-
timas semanas soou a sentença de
morte para a iniciativa de paz árabe
adotada na cúpula da Liga Árabe em
Beirute em março de 2002. Esta pre-
via o estabelecimento de “relações
normais” com Israel em troca de
uma retirada total dos territórios
ocupados desde 1967 e de uma solu-
ção equitativa para o problema dos

refugiados palestinos. Oficialmente,
a posição da Liga permanece defini-
da pelo “plano Abdallah”, nome do
falecido monarca saudita que esteve
na origem da proposta. Mas o equi-
líbrio de poder nessa instância ago-
ra favorece os defensores da norma-
lização, incluindo os Emirados
Árabes Unidos, o Bahrein, o Egito e,
acima de tudo, mesmo que ainda
não a reconheça oficialmente, a Ará-
bia Saudita. Para Riad, como para
Abu Dhabi e Manama, Tel Aviv é um
aliado lógico e seguro na guerra fria
que os opõe a Teerã. Essas monar-
quias acreditam que Washington
não é mais o protetor confiável de
outrora, aquele que, por exemplo,
organizou a resposta depois que o
Exército iraquiano invadiu o Kuwait
em junho de 1990.

UM ESCUDO CONTRA O IRÃ
Em sua época, Barack Obama causou
consternação, para não dizer pânico,
no Golfo ao trabalhar pela assinatura,
em 14 de julho de 2015, de um acordo
sobre a energia nuclear do Irã que sus-
pendia as sanções impostas a Teerã. É
verdade que seu sucessor, Donald
Trump, as restabeleceu após ordenar
a retirada norte-americana do Acordo
de Viena, em 8 de maio de 2018. Mas
sua propensão a exigir que as monar-
quias paguem “em dinheiro” por sua
proteção e a reiterar que os Estados
Unidos não deveriam mais se envol-
ver em “guerras sem fim” convenceu
os líderes do Golfo de que sua região
não era mais tão estratégica para os
Estados Unidos. Desde então, a nor-
malização com Israel é vista como
uma questão de sobrevivência diante
da ameaça do Irã, ou mesmo daquela
de um Iraque que está se rearmando.
E o resto do mundo árabe é instado a
seguir essa mudança de curso.
Em 9 de setembro, sob pressão da
Arábia Saudita, dos Emirados Árabes
e do Egito, uma moção de resolução
da Liga Árabe condenando a norma-
lização com Israel foi enterrada em
uma reunião regular dos ministros
de Relações Exteriores, para grande
desgosto dos palestinos – autores da
proposta –, que em consequência de-
cidiram renunciar à presidência do
conselho da Liga (ler boxe). “Os paí-
ses do Golfo fazem a lei dentro da Li-
ga Árabe. Eles têm dinheiro, enquan-
to, em outros lugares, existe crise
econômica ou guerra civil. Para agra-
dar à Arábia Saudita e aos Emirados e
obter ajuda financeira, basta parar de
falar dos palestinos”, confidencia um
diplomata magrebino habituado às
cúpulas dessa entidade, nas quais, já
há vinte anos, a linha de conduta em
relação à Palestina era ditada pelos
“falcões” (Argélia, Iraque, Sudão, Sí-
ria e Iêmen). Sinal dos tempos, nin-
guém mais ouve falar do gabinete de
boicote a Israel. Mas é verdade que
sua sede fica em Damasco...
Rápido para reclamar os louros da
evolução em curso, Trump tuitou em
24 de outubro que “cinco outros paí-
ses [árabes] pretendem seguir o
exemplo” de Abu Dhabi, Cartum e
Manama. Além do Sultanato de Omã,
da Mauritânia, do Catar e do Marro-
cos (os dois últimos já mantendo re-
lações informais com Tel Aviv), o in-
quilino da Casa Branca esperava
convencer a Arábia Saudita a oficial-
mente dar esse passo, mas a prudên-
cia do rei Salman bin al-Saud preva-
leceu. Em 2018, este último já
convocava o príncipe herdeiro,
Mohammed bin Salman (“MBS”),
após ele ter multiplicado as declara-
ções favoráveis a Israel e ao “direito
dos israelenses de ter sua própria ter-
r a”.^3 Em janeiro, quando o Ministério
© Juliana Russo

.
Free download pdf