Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

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22 Le Monde Diplomatique Brasil^ DEZEMBRO 2020


MÁXIMA INFLUÊNCIA COM O MÍNIMO ESFORÇO


Na esteira de Donald Trump, diversos comentaristas estimam que a China está no rumo
de fagocitar a ONU. Se é difícil medir uma influência difusa, os dados objetivos mostram
que a realidade está longe de corresponder à fantasia. Por ora, com objetivos comerciais
ou para legitimar suas ações, Pequim visa apenas comandar algumas agências

POR JEANNE HUGHES*

Fantasmas em torno de


uma “ofensiva chinesa”


nas Nações Unidas


“É


possível contar nos dedos
de uma mão os altos fun-
cionários chineses nas Na-
ções Unidas. E não é por
falta de cargos de responsabilidade.”
O ano é 2005. Wang Jingzhang, diplo-
mata chinês aposentado que por
muito tempo foi secretário do Comitê
de Sanções para o Iraque, da ONU,
queixa-se na imprensa de seu país.^1 A
pequena corte de funcionários envia-
da pela China a Nova York é compos-
ta, em sua maioria, por tradutores e
redatores. Os não linguistas “traba-
lham dispersos em diversos serviços
técnicos ou gerais”. Segundo ele, das
oito direções do Secretariado das Na-
ções Unidas, apenas o Departamento
para Assembleia Geral e Gestão de
Conferências, responsável pela ges-
tão das abarrotadas reuniões, é às ve-
zes deixado para um funcionário chi-
nês, que pode chegar ao posto de
secretário-geral adjunto. Na ONU, os
chineses sentem-se como se fossem a
quinta roda da carroça.
Quinze anos depois, o cenário é
muito diferente: vários chineses
ocupam cargos de direção, por
exemplo, na Corte Internacional de
Justiça (CIJ) e na União Internacio-
nal de Telecomunicações (UIT) (ver
boxe). Alguns analistas preocupados
avaliam que é raro um país conse-
guir tanta inf luência em tão pouco
tempo. É como se, após uma longa
bebedeira em comemoração ao “fim
da história”, o Ocidente acordasse de
ressaca em 2020 e percebesse que, na
mesa da ONU, quem serve o café da
manhã é a China.

SUB-REPRESENTAÇÃO
NAS ENGRENAGENS
No entanto, conseguir declarações
sobre as consequências dessa trans-
formação é difícil: vinculados por
contrato a um dever de discrição, cuja
transgressão pode lhes custar o em-

prego, os funcionários da ONU são
desconfiados; o mesmo ocorre com os
diplomatas, embora estes nada te-
nham a temer, exceto a ira chinesa.
Quase todos pedem anonimato. “A
China age ao longo do tempo, de for-
ma muito organizada e sistêmica”, co-
menta P.F., diplomata francês em No-
va York. “O modo de funcionamento
da sociedade chinesa é o planejamen-
to, e isso fica evidente em sua aborda-
gem das questões internacionais.”
Integrada à ONU em 1971, substi-
tuindo Taiwan, a República Popular
da China foi por muito tempo deixada
de lado, apesar de seu estatuto de
membro permanente do Conselho de
Segurança. Apenas em 2003 o país ob-
teve, com Shi Jiuyong, a presidência
da CIJ. A partir daí, seguiu embalada.
Em 2007, Margaret Chan, de Hong
Kong, assumiu a direção da primeira
agência especializada da ONU, a Or-
ganização Mundial da Saúde (OMS) –
uma posição de inf luência, que per-
mitiu elevar a medicina tradicional
chinesa ao nível de norma internacio-
nal em 2018, um ano após o fim de seu
mandato. Durante esse período, Tai-
wan foi integrado como observador às
assembleias gerais da OMS, antes de
ser excluído, sob pressão chinesa,
após a eleição para a presidência da
ilha, em 2016, de Tsai Ing-wen, a presi-
denta do Partido Democrático Pro-
gressista, independentista.
O ano de 2007 também foi o da
chegada de Sha Zukang à frente do
importante Departamento de As-
suntos Econômicos e Sociais (Desa),
onde foram elaborados os dezessete
Objetivos de Desenvolvimento Sus-
tentável, oficialmente adotados pela
Assembleia Geral em 2015. Nesse
ano, sem chamar muita atenção, a
China já controlava quatro agências
especializadas. Essa situação ainda
perdura, mas os olhares mudaram, e
crescem as preocupações.

Porém, por mais estranho que
possa parecer, os números mostram
que a China é bastante sub-represen-
tada nas engrenagens da organiza-
ção:^2 em 2018, entre as 37.505 pessoas
empregadas apenas pelo Secretariado
Geral (excluídas as Forças de Manu-
tenção da Paz), havia apenas 546 fun-
cionários chineses, entre os quais
muitos tradutores (132), sendo o man-
darim uma das seis línguas oficiais da
ONU. A China fica atrás da Índia (571),
do Iraque (558) e do Reino Unido
(839), e muito longe da França (1.476)
e dos Estados Unidos (2.531). Embora,
considerados todos os setores e de-
partamentos da ONU (excluídas as
Forças de Paz), o número de chineses
tenha dado um salto entre 2009 e
2019, enquanto o de norte-america-
nos caiu, as hierarquias permane-
cem. A China responde por 1,2% dos
efetivos totais (contra apenas 1% dez
anos antes), e os Estados Unidos, por
5% (contra 5,8%).^3 É difícil afirmar
que há uma invasão chinesa na ONU.
“Ao contrário de alguns países,
que têm uma presença simultanea-
mente muito ampla e muito diluída,
os chineses concentram-se em algu-
mas direções”, explica P.F., “em posi-
ções de destaque, nem sempre de ní-
vel muito elevado, mas que têm uma
dimensão prescritiva ou são decisi-
vas para o funcionamento da admi-
nistração. E eles sabem muito bem
identificá-las.” Um exemplo emble-
mático: o Desa. Ligado ao Secretaria-
do, ele constitui um feudo chinês há
catorze anos, com três dirigentes su-
cessivos. Embora pouco conhecido,
esse departamento é o principal au-
tor de toda a literatura da ONU: seus
relatórios e recomendações servem
de base para as negociações e os tra-
balhos das comissões da Assembleia
Geral e do Conselho Econômico e So-
cial (Ecosoc), órgão consultivo da
ONU. Suas publicações anuais sobre

os Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável e suas Perspectivas da
Economia Mundial são amplamente
usadas em todo o mundo, muito além
dos corredores da ONU.
“A maior parte das decisões e das
iniciativas dessas entidades [do De-
sa] vai no sentido de interesses dire-
tos da China, ou pelo menos não se
opõe a eles”, continua o diplomata. “É
uma estratégia de posicionamento
que se concentra também nos textos.
Uma resolução sobre um assunto es-
pecífico que emprega os elementos
de linguagem de um texto terá in-
f luência jurídica sobre a forma como
os Estados serão vinculados e sobre a
constituição de normas futuras.” En-
tre os textos produzidos por esse de-
partamento, é possível conhecer “O
modelo chinês de sucesso econômi-
co”^4 – elogiado, é claro –, ou ser apre-
sentado às Novas Rotas da Seda (BRI),
o grande projeto do Estado chinês,
como um meio de “cooperação para o
desenvolvimento sustentável”.^5
Sub-repticiamente, a China tenta
gerir sua imagem por meio do domí-
nio, ou pelo menos de um controle,
do discurso. Assim, sua “capacidade
de fazer parte de objetivos gerais, co-
mo os Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável, nunca é realmente con-
testada”, enfatiza nosso diplomata,
“embora não seja possível dizer que a
indústria chinesa é a menos poluente
nem que os compromissos assumi-
dos por Xi Jinping com o meio am-
biente impressionam. No entanto, a
China é mencionada em toda parte
como uma grande defensora do meio
ambiente, da biodiversidade etc. Em
termos de discurso e de imagem, o
efeito é convincente”.
Estratégico, o Desa é também, em
suas próprias palavras, “um dos pon-
tos de entrada para ONGs que bus-
cam um estatuto consultivo junto ao
Ecosoc. Ao apoiar o Comitê das ONGs,
ele [as] orienta sobre a melhor forma
de contribuir com o trabalho do Con-
s e l h o”.^6 E como as questões ligadas
aos “povos autóctones” também são
de responsabilidade do Desa, a dire-
ção chinesa está no lugar mais privi-
legiado quando um indesejável ativis-
mo tibetano ou uigur se manifesta...
Em 2017, Wu Hongbo, então secre-
tário-geral adjunto, destacou-se ao
jogar a carta da suspeita de terroris-
mo para expulsar, por meio das for-
ças de segurança, o ativista uigur
Dolkun Isa, que se dirigia à sessão
anual do Fórum Permanente para
Questões Indígenas da ONU – um
gesto reivindicado na televisão esta-
tal chinesa pelo próprio Wu Hongbo.
No ano seguinte, seu sucessor, Liu
Zhenmin, tentou repetir a manobra,
porém sem sucesso, graças à inter-
venção das missões diplomáticas da
Alemanha e dos Estados Unidos.

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