Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

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DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 27


real valorizada por sua família, ensi-
nando a saudação hitlerista às sobri-
nhas. Mais tarde, estabelecido nas
Bahamas, ele tentou convencer os Es-
tados Unidos a permanecer neutros
na guerra contra a Alemanha. Outro
admirador de Adolf Hitler, o duque de
Saxe-Coburgo, primo do pai de Eliza-
beth, compareceu ao funeral do rei
vestido como general da Sturmab-
teilung (Seção de Assalto, SA).
A monarca que reinou por mais
tempo na história da Inglaterra e da
Europa incorpora uma certa forma de
atemporalidade. Do desmantelamen-
to do Império ao referendo sobre o
Brexit (2016), passando pelo movi-
mento punk, apenas sua idade mu-
dou. Hoje ela usa peles sintéticas, pre-
feridas às verdadeiras, mas, no fundo,
a rainha é história conservada no ge-
lo. Ela aparece de vez em quando,
quando ocorrem catástrofes, para
tranquilizar seu povo. Em um discur-
so no início do primeiro confinamen-
to por conta da pandemia de Co-
vid-19, em março, ela evocou, com
traços congelados, a canção de guerra
de Vera Lynn “We’ll meet again” [“Nós
nos encontraremos novamente”].
A continuidade é um valor caro
aos monarquistas. Em suas Reflexões
sobre a Revolução Francesa, de 1790, o
filósofo Edmund Burke comparou a
febre revolucionária do campo do Ilu-
minismo às disposições mais mode-


radas de seus colegas e compatriotas.
“Tais cabalas não existem na Ingla-
terra”, onde a Constituição emana da
“simplicidade de nosso caráter nacio-
nal”, disse ele, passando um pouco
por alto sobre a turbulência que seu
país conhecera um século antes, em
particular com a execução de Carlos I.
“Estamos decididos a manter uma
Igreja estabelecida, uma monarquia
estabelecida, uma aristocracia esta-
belecida, assim como uma democra-
cia estabelecida, cada uma segundo o
grau que lhe é próprio. [...] É a desgra-
ça (e não, como pensam esses senho-
res, a glória) daquela época submeter
tudo à discussão, como se a Consti-
tuição de nosso país fosse motivo de
altercações, e não de celebrações.”
O culto da tradição é ilustrado, por
exemplo, pela permanência dessa es-
tranha noção jurídica que é a “prerro-
gativa real”, em virtude da qual o go-
verno pode arrogar-se os poderes
outrora atribuídos à Coroa, que lhe
permitem agir fora da lei. Nesse con-
texto, como apontou o teórico político
Harold J. Laski, “a Coroa é um hieró-
glifo nobre”^5 que permite que muitos
funcionários se esquivem de suas res-
ponsabilidades, escondidos atrás de
um véu de mistério. As tentativas de
reformar esses privilégios falharam,
em nome desse princípio relembrado
em 2009 pelo governo neotrabalhista
de Gordon Brown: “Nossa Constitui-
ção se desenvolveu organicamente ao
longo dos séculos, de modo que não
há necessidade de mudá-la por um
simples desejo de mudança”.^6
Segundo o historiador David Can-
nadine, a continuidade entre os ri-
tuais de hoje e os do passado distante
seria, no entanto, “bastante ilusó-
r i a”.^7 Seria apenas um resíduo das
tradições extravagantes desenvolvi-
das no século XIX para compensar o
enfraquecimento dos poderes da fa-
mília real e o esboroamento de seu
império. Nessa hipótese, tradições
ainda mais rocambolescas terão de
ser postas em prática ao longo dos
próximos anos se a monarquia quiser
superar os desafios que a aguardam.
O príncipe Charles, herdeiro do tro-
no, certa vez inundou o governo com
cartas sobre arquitetura, mudança
climática e miséria social, mas o sen-
so de tato político de sua mãe cruel-
mente lhe faz falta. Com uma taxa de
popularidade de 47%, ele vem apenas
em sexto lugar entre as figuras reais
mais populares. Alguns temem que,
com a morte de Elizabeth, toda a mo-
narquia vacile. Outros estão espa-
lhando teorias malucas nas redes so-
ciais de que ela já estaria morta,
atualizando a obsessão mórbida dos
britânicos com o corpo de seu mo-
narca como personificação do Esta-
do, quer se presuma que tenha tido
sífilis (Henrique VIII), seja virgem

(Elisabete I) ou tenha sido acometido
de gota (a rainha Ana). “Hoje não de-
capitamos mais as damas reais, mas
ainda as sacrificamos”, constata a ro-
mancista Hilary Mantel sobre a fixa-
ção da mídia pelo físico de Kate Mid-
dleton, esposa do príncipe William.^8

UMA DAS MARCAS DE
MAIOR SUCESSO NO MUNDO
Também no cenário internacional, a
monarquia britânica está perdendo
seu brilho. Há alguns anos, vozes se
levantaram para exigir que, após o fi-
nal do reinado de Elizabeth II, a lide-
rança da Commonwealth^9 seja exerci-
da de forma alternada por cada um de
seus membros, ou por uma figura po-
lítica reconhecida, antes que a rainha
consiga impor a sucessão do príncipe
Charles em seu posto. Apenas cerca
de vinte países^10 deverão um dia subs-
tituir seu retrato nas notas: mais da
metade dos estados da Common-
wealth – 31 de 54 – agora são repúbli-
cas. Em setembro, a ilha de Barbados
decidiu retirar da rainha sua posição
de chefe de Estado. A Austrália reali-
zou um referendo sobre essa questão
em 1999, que foi perdido por pouco
pelos partidários do regime republi-
cano. Uma votação semelhante pode-
ria se seguir na Nova Zelândia, de
acordo com sua primeira-ministra,
Jacinda Ardern, enquanto 44% dos
canadenses afirmam ser a favor do
divórcio com a Coroa britânica (con-
tra 29% que desejam o contrário).
No entanto, dessa máquina legal e
financeira que é a casa de Windsor –
batizada de “a firma” (“The Firm”) pe-
lo príncipe Philip – não se pode dizer
de forma alguma que não esteja adap-
tada aos tempos modernos. Ela conti-
nua sendo uma das marcas de maior
sucesso do mundo. Depois de sua fu-
ga para Los Angeles, Harry e sua espo-
sa, Meghan Markle, transformaram
literalmente seu status principesco
em uma marca registrada, a Sussex
Royal, que usam tanto para adornar
anoraks como para liberar patrocí-
nios. Maravilhada com esse conto de
fadas, a bíblia dos meios de negócios,
The Economist, retoma a máxima de
Karl Marx segundo a qual o capitalis-
mo destruirá os vestígios do feudalis-
mo para se alegrar pelo fato de a mo-
narquia britânica ter “fortalecido o
capitalismo em vez de miná-lo”.^11 A
rainha gosta de se exibir como apolíti-
ca, trabalhadora e dedicada, virtudes
que um chefe de start-up não rejeita-
ria: “A maioria das pessoas tem um
emprego e depois vai para casa, en-
quanto em minha existência trabalho
e vida são uma coisa só”, disse na BBC
em 1992. “Às vezes, gostaria de ter
mais tempo para mim.”
Adicione-se a isso que, no século
X X, graças à televisão e aos paparazzi,
membros da família real se tornaram

celebridades globais; no século X XI, o
clã se divide entre os que se entregam
à divulgação banal de si mesmos nas
redes sociais e os que persistem em
manter o mistério que garante seu
poder. Embora a rainha nunca tenha
dado uma entrevista à imprensa e a
monarquia continue sendo o único
órgão do Estado imune à liberdade de
informação, a Coroa foi forçada a
transgredir um pouco seu voto de dis-
crição com a morte da princesa Diana
em Paris, em 31 de agosto de 1997. Co-
mo assinala o ex-diretor do Le Monde
Diplomatique Ignacio Ramonet, o aci-
dente do túnel da Ponte de l’Alma foi
um momento crucial na história da
imprensa, um “psicodrama planetá-
rio” testemunhando uma “globaliza-
ção emocional”. O f luxo contínuo
possibilitado pela internet, a atenção
maníaca aos detalhes observada pe-
los tabloides e a cobertura maciça da
grande mídia combinaram-se para
desencadear uma crise sem prece-
dentes: “Diana deixava o perímetro
limitado e folclórico da seção de cele-
bridades para entrar direto nas prin-
cipais e nobres seções dos jornais diá-
rios da imprensa política”. Sua morte
foi o “primeiro episódio dessa nova
era da informação global”.^12
“A casa de Windsor tem um cora-
ção?”, “Mostrem-nos que podemos
contar com vocês”, “Onde está a ra-
inha?”, “Onde está a bandeira?”: as
“primeiras páginas” da imprensa^13
farfalhavam de indignação quando o
Palácio de Buckingham ostensiva-
mente deixou de içar a Union Jack até
a metade do mastro, como dizem ser
tradição no caso da morte de uma fi-
gura real. Em setembro de 1997, a ra-
inha cedeu à pressão popular e con-
cordou em demonstrar emoção. A
explosão de tristeza planetária pro-
vocada pela morte de Lady Diana –
multidões em lágrimas, funeral visto
por metade da população mundial, a
Ponte de l’Alma e a rua do Palácio de
Kensington cobertas de montanhas
de f lores – exigiu um eco da rainha.
Em seu discurso ao vivo na televisão,
o primeiro que ela dava em 38 anos,
Elizabeth adotou um tom pessoal, até
íntimo, que não era habitual dela: “O
que estou dizendo agora, como ra-
inha e como avó, vem do coração”, ela
disse, balançando levemente e reci-
tando as palavras escritas para ela
pelo spin doctor (assessor de comuni-
cação) do primeiro-ministro Tony
Blair, Alastair Campbell.
O reality show real cujos tabloi-
des engordam – a nora bulímica, o fi-
lho adúltero, o filho ilegítimo indis-
ciplinado – humaniza as pessoas
dessa organização secreta na mente
do público. Como Bagehot ainda ob-
serva, “uma família no trono é uma
ideia interessante. [...] Uma família
real ameniza a vida política pela in-

© Diana Ejaita

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