Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

(Antfer) #1

DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 29


ma. Denunciando uma “caça às bru-
xas”, outro texto logo identificou
essas acusações como um “ataque
contra o Estado democrático de di-
r e i t o”.^3 A ênfase desse protesto con-
firma a dificuldade dos intelectuais
de se conceberem simplesmente co-
mo trabalhadores que lutam contra a
degradação de suas condições de
trabalho. Já em 2009, a mobilização
contra o desmanche do status dos
professores pesquisadores foi apre-
sentada como uma questão de civili-
zação”...^4 Um grande número de ca-
tegorias profissionais foi atacado por
um governo conservador, com a in-
diferença da maior parte daquelas e
daqueles que professam nos anfitea-
tros. Mas alguns universitários, con-
vencidos de ocupar um lugar à parte
na sociedade, não podem se impedir
de recomeçar, toda vez que são em-
purrados, o eterno combate do Ilu-
minismo contra o obscurantismo,
em um mundo onde o papel do per-
seguido estaria reservado a eles. A
propaganda da extrema direita e
seus êxitos eleitorais fomentam os
mais alarmistas discursos. Assim, o
apoio aos pesquisadores franceses
que vem do exterior, mais graças às
redes de uma profissão fortemente
internacionalizada do que à notorie-
dade de Blanquer na América do
Norte, não se preocupou com sutile-
zas ao postular uma “tendência
mundial em que o racismo é protegi-
do como liberdade de expressão, en-
quanto expressar um ponto de vista
antirracista seria uma violação”. As
universidades teriam passado para
as mãos da Ku Klux Klan sem que
ninguém percebesse?
Além das batalhas de textos que
interessam aos trabalhadores inte-
lectuais, a liberdade universitária su-
põe que o ofício de professor e de pes-
quisador possa ser exercido em
condições materiais satisfatórias.
Desde a lei relativa às liberdades e
responsabilidades das universidades


(LRU), em 2007, os estabelecimentos
padecem de um subfinanciamento
crônico, defasado pelo aumento do
número de estudantes. Sua “autono-
mia” se reduz à possibilidade de eles
próprios se inf ligirem, com mais ou
menos ardor, uma política de austeri-
dade orçamentária. Se a liberdade de
ensino e de pesquisa não é submetida
a nenhuma forma de censura, ela ne-
cessita também que o conjunto da
comunidade universitária possa tra-
balhar com serenidade. Ora, o impe-
rativo da “excelência” impõe correr
atrás de licitações para projetos na
esperança de obter fundos dos quais
as unidades de pesquisa não dis-
põem mais. Aliás, esse modo de fi-
nanciamento demonstrou sua inuti-
lidade no contexto da pandemia de
Covid-19: entre 2015 e 2019, o virolo-
gista Bruno Canard e sua equipe do
CNRS tiveram cinco projetos concer-
nentes ao coronavírus recusados pela
Agência Nacional da Pesquisa, que os
julgou não prioritários.^5 A batalha da
liberdade universitária é tanto uma
questão de interesse financeiro como
de grandes princípios.
Essa evidência se encontra no cer-
ne do movimento iniciado no outono
de 2019 nas universidades. Tudo co-
meçou, como sempre, pelos estudan-
tes. Um deles, Anas K., acabava de
tentar se imolar por meio do fogo pa-
ra denunciar a precariedade de todas
aquelas e aqueles que, como ele, são
obrigados a trabalhar para continuar
seus estudos. A essa causa se juntou a
luta contra a reforma da previdência.
Uma minoria de professores, pesqui-
sadores e membros do corpo admi-
nistrativo se juntou às assembleias
gerais e aos cortejos. A raiva era ainda
maior porque um projeto de “lei de
programação plurianual da pesqui-
sa” (LPPR, que se tornou LPR) levava
a temer o pior em matéria de finan-
ciamentos, de precariedade dos con-
tratos e da concorrência nefasta entre
instituições. O presidente diretor-ge-

ral do CNRS, Antoine Petit, pedia,
além de suas resoluções, uma lei não
igualitária: “Sim, não igualitária,
uma lei virtuosa e darwiniana”.^6 To-
das as condições de mobilização con-
tra a precarização das vidas e das
condições de trabalho de cada um es-
tavam reunidas. Os olhares já se vol-
tavam para além das universidades,
para os “coletes amarelos”, os grevis-
tas da SNCF [Companhia Nacional
das Estradas de Ferro] e da R ATP [Au-
toridade Autônoma dos Transportes
Parisienses], os hospitais, os profes-
sores das escolas, das faculdades e
dos liceus...
Em seguida, chegou o confina-
mento. A prisão domiciliar coletiva
alguns dias depois acabou com o elã
e sujeitou os professores às videocon-
ferências. Todas as palavras de or-
dem que tinham agitado a institui-
ção durante quatro meses se
apagaram subitamente diante das
discussões infindáveis com um voca-
bulário desconhecido antes da pri-
mavera: ensino “presencial” ou “a
distância”, aulas “sincronizadas” ou
“dessincronizadas”, funcionamento
de “modo degradado”... A querela do
“islamoesquerdismo” acrescentou
uma última pá de cal no caixão das
reivindicações, que, apesar de tudo,
continuam a af lorar on-line.
Diante das universidades petrifi-
cadas pelo confinamento, a intransi-
gência de Vidal e da maioria parla-
mentar durante a análise da LPR foi
semelhante a uma desprezível de-
monstração de força de um lutador
sem adversário. Alertas e críticas for-
muladas por um grande leque de ins-
tâncias e organizações universitárias
junto ao Executivo foram ignoradas
como se não fossem importantes. O
texto final se mostra até pior do que o
que foi contestado no início. A lógica
“darwiniana” imposta à pesquisa é
acompanhada de um aumento da
precarização pela multiplicação de
contratos por tempo determinado –

entre os “CDI de missão” [contratos
por tempo indeterminado enquanto
dura o projeto] e as “cadeiras de pro-
fessor júnior”. O estatuto nacional dos
professores pesquisadores foi ainda
mais enfraquecido porque o Conselho
Nacional das Universidades (CNU),
encarregado de gerenciar as carreiras
dos professores, vê suas prerrogativas
reduzidas em matéria de recrutamen-
tos em benefício dos estabelecimen-
tos. Enfim, uma emenda destinada
aos estudantes muito politizados aos
olhos da hierarquia pune pesadamen-
te “o fato de penetrar ou se manter nos
recintos de um estabelecimento de
ensino superior [...] com o objetivo de
perturbar a tranquilidade ou a boa or-
dem do estabelecimento”. A única ilu-
sória proposta de submeter a liberda-
de universitária ao respeito dos
“valores da República”, que gastou
tanta tinta, foi abandonada. Como se,
dado o primeiro golpe no touro, não
houvesse mais necessidade de agitar o
pano vermelho.

*Dominique Pinsolle é historiador e pro-
fessor da Université Bordeaux-Montaigne,
na França.
1 “Une centaine d’universitaires alertent: ‘Sur
les dérives islamistes, ce qui nous menace,
c’est la persistance du déni’” [Uma centena
de universitários alerta: sobre as derivas isla-
mistas, o que nos ameaça é a persistência da
negação], Le Monde, 31 out. 2020.
2 “Face à l’obscurantisme, faisons grandir une
société unie et fraternelle” [Diante do obscu-
rantismo, façamos crescer uma sociedade
unida e fraternal], comunicado intersindical,
21 out. 2020.
3 “Cette attaque contre la liberté académique
est une attaque contre l’État de droit démo-
cratique” [Esse ataque contra a liberdade
acadêmica é um ataque contra o Estado de-
mocrático de direito], Le Monde, 2 nov. 2020.
4 “Université, un enjeu de civilisation” [Universi-
dade, uma questão de civilização], L’Humani-
té, Saint-Denis, 18 fev. 2009.
5 Bruno Canard, “La virologie est un sport de
combat” [A virologia é um esporte de comba-
te], Université ouverte, 19 set. 2020. Disponí-
vel em: https://universiteouverte.org.
6 Antoine Petit, “La recherche, une arme pour
les combats du futur” [A pesquisa, uma arma
para os combates do futuro], Les Échos, Pa-
ris, 26 nov. 2019.

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