Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

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30 Le Monde Diplomatique Brasil^ DEZEMBRO 2020


MEDIDAS TÃO ANTIDEMOCRÁTICAS QUANTO INEFICAZES


Quem vai parar a


máquina repressiva?


Apoiado pelos principais sindicatos de policiais, o projeto de lei sobre segurança global foi votado pela
Assembleia Nacional francesa em 24 de novembro. Ele estende uma tendência repressiva que, da luta
contra o terrorismo ao estado de emergência sanitário, vincula a segurança à restrição de liberdades.
E se essa estratégia se mostrasse contraprodutiva?

POR VINCENT SIZAIRE*

O


s assassinatos de Conf lans-
-Sainte-Honorine e de Nice,
perpetrados em outubro por
jovens fanáticos que afirmam
pertencer a um islã fantasioso, deram
um novo impulso a todos aqueles
que, em nome da “guerra contra o
terrorismo”, exigem a suspensão
mais ou menos duradoura de nossas
liberdades públicas. E, mesmo que
algumas vozes tenham se levantado
para defender os princípios do Estado
de direito,^1 nenhuma questionou di-
retamente a visão segundo a qual,
diante do crime terrorista, a expan-
são infinita do poder repressivo seria
um mal necessário.
Preocupante do ponto de vista de-
mocrático, essa retórica está longe de
ser inédita. Ela encontra suas raízes
na tradição autoritária que tem tra-
balhado nosso ordenamento jurídico
desde o final do século XVIII.^2 Nós a
encontramos no cerne do projeto de
lei que, sob o pretexto de garantir a
“segurança global”, tende a impedir
qualquer questionamento das forças
policiais pelas violências que come-
tem. Também está presente nas me-
didas de exceção colocadas em práti-
ca pelo governo francês desde
fevereiro para enfrentar a crise da
saúde, reforçando a ideia de que a re-
núncia mais ou menos completa de
nossa liberdade de ir e vir seria o pre-
ço a pagar para salvar nossa vida e
nossa saúde.
Baseadas na oposição simplista
entre segurança e liberdade, essas re-
presentações derivam do mais com-
pleto dogmatismo. A exigência cons-
titucional de fiscalização e
moderação da ação das autoridades
repressivas, que hoje gostaríamos de
colocar entre parênteses, estrutura o
projeto penal iluminista, consagrado
pela Declaração dos Direitos do Ho-
mem e do Cidadão, de 26 de agosto de


  1. Ora, esse projeto foi construído
    não apenas em oposição ao despotis-
    mo do poder monárquico, mas tam-
    bém como reação à ineficácia do sis-
    tema repressivo do Antigo Regime,


caracterizado pela arbitrariedade e
pelo excesso. A ordem penal republi-
cana foi construída sobre a convicção
de que uma lei é “tanto menos eficaz
quanto mais desumana”.^3

DISPERSÃO DAS FORÇAS POLICIAIS
Se queremos acabar com a corrida
repressiva desenfreada, talvez seja o
momento de considerar que, longe de
ser um obstáculo para a efetividade
das punições, o respeito ao Estado de
direito é uma de suas condições bási-
cas. Quanto mais garantimos – em
particular pelo controle de uma auto-
ridade independente – que as medi-
das privativas ou restritivas da liber-
dade adotadas pelas autoridades
públicas sejam estritamente neces-
sárias e proporcionais ao objetivo
que perseguem, mais nos permiti-
mos a possibilidade de realizá-las.
Essa hipótese se verifica em primeiro
lugar no que diz respeito aos disposi-
tivos de combate aos chamados cri-
mes terroristas. Desde o início da dé-
cada de 1980 e da abolição do
Tribunal de Segurança do Estado,
sempre foi por meio de procedimen-
tos legais conduzidos por juízes de
instrução independentes que os pla-
nos de ataques foram frustrados, per-
seguindo seus autores sob a alegação
de associação terrorista – e prenden-
do-os – antes que passassem à ação.^4
Se essa abordagem está longe de ser
isenta de crítica, o enquadramento
judicial pressupõe que as forças poli-
ciais e os magistrados apoiem o pro-
cesso desta ou daquela pessoa em
elementos precisos, objetiváveis e
consistentes.
Por outro lado, as medidas admi-
nistrativas de combate ao terrorismo,
que se multiplicaram ao longo da úl-
tima década, apresentam um balan-
ço pouco lisonjeiro, assim como as
buscas ordenadas sob a cobertura do
estado de emergência proclamado
entre novembro de 2015 e outubro de
2017 e que, com o nome de “visitas”,
agora figuram no direito comum.^5
Essa repressão extrajudicial é carac-

terizada por um aumento significati-
vo do poder das autoridades. Por um
lado, tais buscas são ordenadas ape-
nas pelo Poder Executivo; e, no caso
de medidas de estado de emergência,
sem nenhum controle judicial prévio,
as diligências podem simplesmente
ser objeto de controle a posteriori do
juiz administrativo – se for o caso de
um recurso ser interposto, o que mui-
to raramente acontece. Por outro la-
do, e sobretudo, elas podem ser reali-
zadas contra qualquer pessoa cujo
“comportamento” seja percebido co-
mo uma “ameaça”,^6 sem que seja ne-
cessário caracterizar o cometimento
de um ato concreto.
Desde o fim do estado de emer-
gência, as autoridades também de-
vem justificar que a pessoa “ou entre
em relação de maneira habitual com
pessoas ou organizações que inci-
tam, facilitam ou integram atos de
terrorismo, ou apoie (ou se filie a) te-
ses que incitem o cometimento de
atos terroristas ou façam apologia a
t a i s a t o s”.^7 Mas a natureza extensa do
conceito de terrorismo permite um
escopo particularmente amplo de
aplicação.^8 E se a questão também se
coloca no que se refere aos procedi-
mentos penais, estes pressupõem, no
mínimo, o cometimento de um delito
que, se for mais ou menos arbitraria-
mente qualificado de terrorista, im-
plica a prova de um ato material ilíci-
to, o que de forma alguma é o caso em
questões administrativas.
Ressurgimento de uma aborda-
gem para contornar as garantias do
processo penal que se observa desde
o início do século XIX,^9 essa resposta
administrativa constitui, sem dúvi-
da, o paradigma da repressão desen-
freada que os depreciadores do Esta-
do de direito reclamam. No entanto,
ela se mostra mais eficaz, ou seja,
mais capaz de permitir a elucidação
de atos terroristas e, em particular, a
identificação de ataques planejados?
Sem ofender seus defensores, a cons-
tatação do fracasso é mais que gri-
tante. Assim, as buscas ordenadas

durante o estado de emergência terão
revelado uma possível associação
terrorista de criminosos em menos
de 1% dos casos.^10 E, em relação àque-
las ordenadas desde então, apenas
duas pessoas das 165 buscas foram
processadas sob esse pretexto.^11 Ob-
serve-se que, tanto num caso como
no outro, esses procedimentos pode-
riam perfeitamente ter sido iniciados
em um quadro judicial, que concede
poderes de busca idênticos em maté-
ria de crime terrorista.^12 Quanto à
afirmação de alguns segundo a qual
as “visitas” administrativas teriam
permitido afastar a dúvida dos servi-
ços de inteligência em relação a de-
terminados indivíduos,^13 ela parece
acrobática em um momento em que
estes últimos possuem todos os dis-
positivos possíveis e imagináveis pa-
ra monitorar as pessoas das quais
suspeitam, desde a interceptação de
suas conversas telefônicas até a ins-
talação de um sistema de escuta em
seu apartamento, passando pela es-
pionagem da menor de suas ativida-
des digitais.^14

COERÇÃO DESPROPORCIONAL
Na realidade, a prodigiosa inefi-
cácia dessa repressão “livre e sem
distorções” é facilmente explicada.
Ao alargar de modo desproporcional
o escopo dos fatos e gestos passíveis
de serem qualificados de “terroris-
tas”, ela leva à dispersão, ao espalha-
mento e, logo, ao esgotamento das
forças repressivas. Pior ainda, corre-
-se o risco de, em última instância,
reduzir a capacidade dos serviços de
polícia e dos magistrados de identifi-
car projetos criminosos comprova-
dos, deixando de convidá-los a se
concentrar de maneira precisa e rigo-
rosa nos atos que pretendem perse-
guir. Numa altura em que ninguém
pensa em negar a persistência e a gra-
vidade do risco de um atentado, é
realmente razoável pedir aos procu-
radores dedicados ao combate ao ter-
rorismo que se encarreguem do me-
nor procedimento aberto sob a

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