Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

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DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 35


do Norte: “Encontrar uma solução
para a crise ambiental implica que a
burguesia mundial, as algumas cen-
tenas de milhões de pessoas mais ri-
cas, reduza seu padrão de vida”^3. Vet-
tese não determina quem são esses
“milhões de pessoas” que constituem
a “burguesia mundial”. Mas, visto
que a Europa ocidental e os Estados
Unidos contam com cerca de 800 mi-
lhões de habitantes, seus leitores po-
dem imaginar que ele não está falan-
do unicamente de Bernard Arnault,
dono da LVMH Moët Hennessy Louis
Vuitton, e da rainha da Inglaterra.
Outros, como o antropólogo Jason
Hickel, defendem que o decrescimen-
to não é uma política de austeridade,
mas de abundância. É possível imagi-
nar uma redução planejada da produ-
ção nas nações com renda elevada, de
modo a manter os níveis de vida e até
melhorá-los, eles explicam. Segundo
Hickel, isso implicaria, por exemplo,
redistribuir a riqueza existente.
Vejamos mais de perto o que
ocorreria na ausência do crescimen-
to econômico. Felizmente, o econo-
mista Branko Milanovic, um dos es-
pecialistas mundiais na questão das
desigualdades, nos facilitou esse tra-
balho: segundo seus cálculos, a ren-
da média anual, em 2018, era de
aproximadamente US$ 5.500.^4 Por-
tanto, a proposta de Hickel implica-
ria reunir todas as rendas superiores
a essa soma, de maneira a elevar os
mais pobres para o mesmo nível.
Cinco mil e quinhentos dólares, ou
seja, 4.700 euros (R$ 30 mil) por ano?
A maioria dos ocidentais ganha mais,
às vezes muito mais do que isso. Na
França, segundo o Instituto Nacio-
nal da Estatística e dos Estudos Eco-
nômicos (Insee), o salário médio
bruto anual era de 26.634 euros (R$
170 mil) em 2015 (últimas cifras dis-
poníveis). Certamente, trata-se de
estimativas grosseiras, mas passar
de 26.634 para 4.700 euros constitui-
ria uma amputação do nível de vida
dos trabalhadores franceses. Segun-
do os cálculos de Milanovic, os 27%
da população mundial que embol-
sam mais da metade da renda veriam
seus benefícios serem cortados em
mais de dois terços.
Os partidários do decrescimento
explicam que essa evolução não se
basearia em transferências orçamen-
tárias do Norte para o Sul: o grande
ajuste resultaria de um mecanismo
que autorizaria o Sul a desenvolver
sua produção, enquanto o Norte re-
duziria progressivamente a sua. Em
outras palavras, tratar-se-ia de redu-
zir em cerca de dois terços a produ-
ção de riqueza nos países desenvolvi-
dos. “As fábricas, os trens, os
aeroportos funcionariam um terço
do tempo atual; a eletricidade, o
aquecimento e a água quente fica-


riam disponíveis apenas oito horas
por dia; os proprietários de carros só
teriam direito a utilizá-los um dia a
cada três; e trabalharíamos treze ho-
ras por semana”, conclui Milanovic.
“Ridículo!”, respondem os defen-
sores do decrescimento. A redução da
produção ocidental não seria feita de
maneira tão transversal. Ao contrá-
rio: tudo o que é benéfico para a so-
ciedade continuaria como antes, en-
quanto o que é inútil desapareceria.
E cabe a Hickel listar os setores “des-
truidores do ponto de vista ecológico
e que têm pouco, ou nenhum, inte-
resse para a sociedade”: o marketing,
os 4×4, o boi, o plástico descartável e
os combustíveis fósseis.
Indiscutivelmente produzimos
montanhas de objetos e de serviços
inúteis, mas podemos realmente su-
gerir que dois terços da atividade pro-
dutiva ocidental são supérf luos, pro-
duzindo coisas que não têm o menor
interesse? Daí provêm, provavelmen-
te, as outras soluções imaginadas por
Hickel: redução da semana de traba-
lho, expansão do tempo de lazer e
ampliação de serviços sociais gene-
rosos. Se todo progressista digno des-
se nome aplaudiria tais perspectivas,
nada indica que elas compensariam
o corte anunciado no rendimento de
cada um nem que permitiriam redu-
zir a produção econômica.

Em primeiro lugar, nenhuma
quantidade de tempo livre compensa
os tormentos da pobreza: a possibili-
dade de se liberar das pressões pro-
fissionais, com risco de não comer, já
é oferecida a todos, sem suscitar um
entusiasmo desmedido. Na socieda-
de capitalista, a única coisa mais du-
ra que ser explorado é não o ser.
Além disso, a ideia de que o lazer e
os serviços sociais emitiriam menos
gás de efeito estufa repousa na con-
vicção de que eles não exijam a utili-
zação de produtos manufaturados e
não requeiram, portanto, energia
nem extração de recursos naturais.
Ora, os setores do lazer e de serviços,
certamente menos “sujos” que a in-
dústria pesada, não deixam de ser
menos poluidores: os instrumentos
musicais são fabricados com madei-
ra, metal, plástico; os hospitais estão
repletos de equipamentos que neces-
sitam de centenas de minerais dife-
rentes, assim como dos derivados de
petróleo; o material de escalada, os
caiaques, as bicicletas provêm de ma-
teriais que extraímos do solo.
Se é crucial restaurar e desenvolver
os serviços públicos, especialmente
para chegar ao fim da crise de mora-
dia de que as sociedades desenvolvi-
das padecem, o Estado social não é a
única fonte de nosso bem-estar: há
também o cinema, os jogos, as máqui-

nas de waff le, as televisões. O sonho
segundo o qual a ausência de todos es-
ses bens de consumo – um retorno a
uma “vida simples” – seria a receita da
felicidade seduziu as camadas mais
abastadas da burguesia, pois sonha-
mos melhor com a simplicidade quan-
do todas as nossas necessidades estão
satisfeitas. Uma das críticas internas
mais persistentes da União Soviética
era de que a vida ali era cinza: sentiam
falta de roupas coloridas, música e
abacaxis. Nós queremos pão, sim; mas
queremos rosas também.

*Leigh Phillips é autor de Austerity Eco-
logy and the Collapse-porn Addicts: A De-
fence of Growth, Progress, Industry and
Stuff [Austeridade ecológica e os viciados
em pornografia em colapso: uma defesa do
crescimento, do progresso, da indústria e
das coisas], Zero Books, 2015.
1 Uma retomada das emissões não declaradas
foi registrada a partir do início dos anos 2010
na Ásia oriental, sugerindo que alguém está
mentindo na região. Ver https://ozonewatch.
gsfc.nasa.gov/meteorology/annual_data.html.
2 “The Antarctic ozone hole will recover” [Furo
na camada de ozônio antártica vai se recupe-
rar], Nasa, 4 jun. 2015. Disponível em: ht-
tps://svs.gsfc.nasa.gov.
3 Troy Vettese, “To freeze the Thames” [Para
congelar o Tâmisa], New Left Review, n .111,
Londres, maio-jun. 2018.
4 Branko Milanovic, “The illusion of ‘degrowth’ in
a poor and unequal world” [A ilusão do “de-
crescimento” em um mundo pobre e desi-
gual], Global Inequality, 18 nov. 2017. Dispo-
nível em: http://glineq.blogspot.com.

© Bernard Hermant/Unsplash

Podemos sugerir que dois terços da atividade produtiva ocidental são supérfluos? Não são

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