Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

(Antfer) #1

DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 37


palavra designa “Quem está exposto
a receber ferimentos, golpes; quem
está exposto aos efeitos de uma doen-
ça; que pode servir de alvo fácil aos
ataques de um inimigo”. Em outras
palavras, é “vulnerável” quem está
em posição de fraqueza. Nada impli-
ca que ele deve ser protegido pelos
fortes. Nada, a não ser nossa aptidão
à benevolência, a mesma que levou
alguns a... cuidar do outro com solici-
tude. Todos já perceberam que a be-
nevolência está furiosamente na mo-
da – foi inclusive a palavra do ano em
2018 para o dicionário Le Robert. Ela
está em todos os lugares: no geren-
ciamento – em 2011, 228 empresas
francesas, entre elas a France Télé-
com e o HSBC, assinaram um “cha-
mado à benevolência no trabalho”
por iniciativa da revista mensal
Psychologies Magazine –, na pedago-
gia,^5 nos tuítes de Edgar Morin, nos
festivais de música^6 e nos discursos
políticos. Macron a reivindica sem
hesitar: “Tenho uma regra de vida,
tanto para mulheres e homens quan-
to para as estruturas: a benevolência”
(France 2, 10 abr. 2016). Mais ampla-
mente, a noção se irradia nas decla-
rações de todo tipo. Até mesmo o pre-
sidente do Conselho Europeu,
Charles Michel, se apropriou dela, em
sua mensagem para a Conferência
sobre o Estado da União (8 maio
2020), na qual pediu uma “sociedade
da dignidade e da benevolência”.
Por mais simpática que seja, po-
rém, a noção não é assim tão límpida
quanto parece. Segundo o dicionário
Larousse, trata-se de uma “disposição
de espírito inclinando para a com-
preensão, a indulgência em relação ao
outro”. Isso coloca o benévolo em su-
perioridade em relação ao objeto de
sua amável indulgência. A intenção é
boa, o que não impede que sua valori-
zação e seu papel levantem algumas
questões, pois a benevolência, que
forma com o care e a vulnerabilidade
uma trilogia conceitual, é uma im-
pressionante ferramenta ideológica.
É o que nota com pertinência uma
das filósofas dessa trilogia, Fabienne
Brugère: “Na França, por exemplo, a
ligação social parece fundada em an-
tagonismos. [...] Essa maneira de ver
pode se desenvolver na França por-
que somos um país laico e até ampla-
mente ateu”. Em resumo, “talvez a
França tenha dificuldade em pensar a
sua relação ao outro”, já que, aqui, “a
política só existe por meio do antago-
nismo”. Isso implica “construir a be-
nevolência não somente na moral,
mas também na política”.^7 Sim, aí está
de fato uma “questão política crucial”,
como tinha finamente notado, na en-
trevista já citada, o ministro da Saúde
Véran. A necessidade reivindicada da
benevolência é o agente discreto de
um desejo de modificar nosso contra-


to social. Ela deseja extrair este últi-
mo de sua igualdade “abstrata”, de
seu universalismo “frio”, para orien-
tá-lo para inter-relações fundadas sob
a percepção de uma desigualdade de
fato. A democracia terá finalmente
um “conteúdo sensível”:^8 as vulnera-
bilidades singulares serão levadas em
conta pelas políticas em nome de
uma benevolência reparadora; é so-
bre a base das diferenças que será de-
finida uma nova, autêntica e carnal
ação de um processo de compensa-
ção, integrando a assimetria essen-
cial entre a constelação dos mais fra-
cos e dos outros. Mas, se é patente que
a igualdade de direitos não é suficien-
te para garantir a igualdade real, de
acordo com que normas fundar esses
novos direitos diferenciados? Quem
será escolhido como objeto político
da benevolência? Com base em que
vamos determinar quais cidadãos
minorados – em todos os sentidos do
termo – deverão ter sua minoração re-
parada? A benevolência generalizada
será suficiente para justificar o prin-
cípio da diversidade de tratamento?
Ainda mais porque, como pres-
sentia Macron quando era candidato
à eleição presidencial (“Eu sempre
cultivei a benevolência, com a espe-
rança secreta, grudada no corpo, de
que ela era contagiosa”, Lille, 14 jan.
2017), essa bela disposição por vezes
é um padrão de comportamento.
Sem medo de chocar, Frédéric Wor-
ms, membro do Comitê Nacional de
Ética, nos lembra: “A malevolência é
bem mais universal do que a bonda-
d e ”.^9 Para generalizar a benevolência


  • por vezes volátil – em relação aos
    vulneráveis, é preciso pôr em jogo
    outra noção, que não vem da esfera
    das emoções, mas da consciência: o
    sentimento de responsabilidade. É a
    versão cívica da benevolência.
    Padrinho espiritual do care, o filó-
    sofo alemão Hans Jonas, ex-aluno de
    Martin Heidegger, define o campo
    em sua obra principal, O princípio
    responsabilidade (1979), cujo título
    afirma sua oposição ao Princípio es-
    perança, de Ernst Bloch. Crítico da
    “utopia marxista”, esse ensaio, ani-
    mado pela necessidade de lutar con-
    tra a capacidade que a humanidade
    possui de se autodestruir, afirma que
    “é preciso prestar mais atenção à pro-
    fecia da infelicidade do que à profecia
    da felicidade” e que “o medo se torna
    a primeira obrigação”. Mas é impor-
    tante que esse medo, indispensável
    percepção da vulnerabilidade do vi-
    vo, se torne uma ferramenta de pre-
    servação da vida. Ele deve então ser
    acompanhado da interiorização, pa-
    ra cada um, de sua “responsabilida-
    de” na manutenção da vida. “Ser res-
    ponsável significa aceitar ser
    ‘sequestrado’ pelo que há de mais
    frágil e de mais ameaçado”, explicita.


Para Jonas, “a responsabilidade é a
solicitude, reconhecida como um de-
ver, de outro ser que, quando sua vul-
nerabilidade está ameaçada, se torna
um ‘se preocupar com’”. É imperativo
que esse dever seja respeitado, o que
não é simples, como indicava Worms.
E é por isso que “a democracia, como
ela funciona atualmente – e orienta-
da como ela é sobre o curto prazo –,
não é efetivamente a forma de gover-
no que convém a longo prazo”. Mais
vale uma “tirania benevolente”^10 pa-
ra, de maneira responsável, impor a
todos que se comportem de maneira
responsável, como – exemplo que Jo-
nas adora lembrar – são nossos pais.
Macron entendeu direitinho: ele gos-
ta, ao longo de suas decisões, de evo-
car “nossos filhos”, “nossos concida-
dãos mais vulneráveis”.
Ainda que tenham encontrado di-
versas preocupações ecológicas (pro-
teger a natureza) que lhes deram um
enquadramento teórico, assim como
diversas organizações de defesa dos
“mais frágeis”, essas considerações
político-metafísicas também têm
uma forte inf luência sobre as normas
internacionais e os conceitos jurídi-
cos que ditam a necessidade e as re-
gras do “princípio de precaução” –
constitucionalizado na França desde


  1. Elas entraram, de maneira con-
    temporânea, em ressonância com as
    preocupações das instituições inter-
    nacionais. Desde 1994, o Relatório
    Mundial sobre o Desenvolvimento
    Humano, do Programa das Nações
    Unidas para o Desenvolvimento, pa-
    ra o qual contribuiu o economista
    Amartya Sen, recentralizou a questão
    sobre a segurança da pessoa e assina-
    lou uma temática nova, acordando
    politicamente a primazia do medo.


NOVA CONCEPÇÃO DE CIDADÃO
Em 2001, o relatório da Comissão In-
ternacional sobre Intervenção e So-
berania dos Estados, sob a égide das
Nações Unidas, se intitulava “A res-
ponsabilidade de proteger”, noção
que seria endossada em 2005, no Do-
cumento Final do Encontro Mun-
dial. Essa elaboração terminou por
redefinir o dever de proteção das po-
pulações pelos Estados. Foi então re-
conhecida para a “comunidade in-
ternacional” uma competência em
caso de “falha manifesta”. É esse
conceito que foi invocado, pela pri-
meira vez, em fevereiro de 2011, a fim
de autorizar uma intervenção arma-
da na Líbia, destinada a garantir a
proteção da população civil contra a
vontade do Estado.^11
Exigir a tomada de responsabili-
dade em um dever de proteção dos
vulneráveis se revela, assim, uma em-
preitada que se vincula muito mais
radicalmente com o político do que
com o realismo prudente ou com a

simples “humanidade”. É uma con-
cepção nova do cidadão que se insta-
la, e é importante não deixar o senti-
mentalismo, a culpa ou até mesmo a
generosidade do altruísmo mascara-
rem suas questões. A sociedade é con-
siderada um conjunto orgânico que
somente a coerção pode dirigir ao
Bem; as decisões políticas são justifi-
cadas pela antecipação do pior; a
emancipação não passa mais pelo de-
senvolvimento do espírito crítico,
mas pelo reconhecimento de uma
fragilidade constitutiva e de uma in-
terdependência generalizada, noções
que encontramos no centro desses
propósitos da colapsologia ou das
ideias “comuns”. Macron, em seus vo-
tos para 2020, pôde assim sublinhar
que a reforma da Previdência repousa
“sobre um princípio de responsabili-
dade”. Por outro lado, não há questão
de princípio ou de dever em relação
aos operários da fábrica da Bridgesto-
ne em Béthune, ameaçados de demis-
são. O governo denuncia a “brutali-
dade” do anúncio, mas não impõe a
“benevolência”. Da mesma maneira,
os 650 mil acidentes de trabalho rela-
tados em 2019 provavelmente não o
af ligem. O care tem seus limites.

*Evelyne Pieiller é jornalista do Le Mon-
de Diplomatique.

1 Ler “Liberté, égalité... care” [Liberdade, igual-
dade... care], Le Monde Diplomatique, set.
2010.
2 Sandra Laugier, artigo “Care”, Encyclopaedia
Universalis.
3 Najat Vallaud-Belkacem e Sandra Laugier, La
Société des vulnérables. Leçons féministes
d’une crise [A sociedade dos vulneráveis. Li-
ções feministas de uma crise], Gallimard, Pa-
ris, 2020.
4 Joan Tronto, Un monde vulnérable. Pour une
politique du care [Um mundo vulnerável. Por
uma política do care], La Découverte, Paris,
2009.
5 Ler Clothilde Dozier e Samuel Dumoulin, “La
‘bienveillance’, cache-misère de la sélection
sociale à l’école” [A “benevolência”, o escon-
de-miséria da seleção social na escola], Le
Monde Diplomatique, set. 2019.
6 Flora Santo, “Paris: Manifesto XXI organise
son festival sous le signe de la bienveillance et
de l’amour” [Paris: Manifesto XXI organiza
seu festival sob o signo da benevolência e do
amor], Trax, 2 set. 2020. Disponível em: http://www.
traxmag.com.
7 Philippe Douroux, “Fabienne Brugère: ‘Il faut
construire de la bienveillance non seulement
dans la morale, mais aussi en politique’” [Fa-
bienne Brugère: “É preciso construir a bene-
volência não somente na moral, mas também
na política”], Libération, Paris, 5 ago. 2016.
Cf. também Fabienne Brugère, L’Éthique du
care [A ética do care], Presses Universitaires
de France, Paris, 2017.
8 Fabienne Brugère, “Pour une théorie générale
du care” [Por uma teoria geral do care], La Vie
des Idées, 8 maio 2009. Disponível em: ht-
tps://laviedesidees.fr.
9 Frédéric Worms, Sidération et résistance.
Face à l’événement (2015-2020) [Sideração e
resistência. Diante do acontecimento (2015-
2020)], Desclée de Brouwer, Paris, 2020.
10 Hans Jonas, Le Principe responsabilité [O
princípio responsabilidade], Flammarion, Pa-
ris, 2013.
11 Ler Anne-Cécile Robert, “Origines et vicissi-
tudes du ‘droit d’ingérence’” [Origens e vicis-
situdes do “direito de ingerência”], Le Monde
Diplomatique, maio 2011.

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