Ela é insuportavelmente inteligente: em 2018, foi escolhida a melhor jovem
cientista dos Estados Unidos, num concurso patrocinado pela gigante de
tecnologia 3M e já deu uma conferência TED. No progr ama de Jimmy Fallon, o
Tonight Show, mostrou um aparelho inventado por ela que mede a quantidade
de chumbo pr esente na água e mostra o resultado num aplicativo. Confiável e
barato, o que é ótimo para países pobres. Eu j á exigiria que o meu fi lho entrasse
sem vestibular na faculdade se ele t ivesse fe ito isso, mas Rao foi muito além.
Também criou um aparelho que mede o nível de adicção em opiáceos, por meio
da taxa de proteínas produzidas por um dos genes responsáveis pela
dependência química. Não para por aí: leio que ela inventou ainda uma extensão
do Chrome que subli nha palavras insultantes ou desrespeitosas quando alguém
está digitando um texto e pede confirmação se essa é mesma a intenção. A ideia
é diminuir o assédio moral nas redes.
A menina d iz que todo mundo pode fazer ciência. Acho a afirmação otimista. O
que pode existir é mais gente fazendo ciência, com resultados que , seriam
posit ivos para todo mundo. Mas o meu ponto não é a ciência. E a infância. Tal
como a prezamos e a cer camos de cuidados, ela massif icou-se quando as
atividades econômicas se tornaram mais específicas e complexas - o que exigia
maior quantidade de cérebros bem nutr idos, mais desenvolvidos e adestrados
desde cedo. Demandava tempo de maturação e for mação. Foi a partir do final do
século XVIII, com a primeira Revolução Industrial, que a infância começou ganhar
contornos até então existentes somente nas classes abastadas, e ampliou-se o
ensino universal. O objetivo era produzir gente preparada para as novas tarefas a
ser executadas. Funcionou.
Natur almente, há crianças mais ou menos dotadas intelectualmente, apesar das
tentativas cada vez mais fr equentes de igualar todas na escola, por meio de
conceitos mais subjetivos do que as impiedosamente objetivas notas
matemáticas. E há as crianças-prodígio, em especial nas artes. A mais
emblemática é Wolfgang Amadeus Mozart, que começou a compor quando t inha
5 anos. Não importa o campo do seu ta lento, elas dificilmente ultrapassam o
aspecto circense e conseguem levar a genialidade pela vida toda. Mozart é uma
das exceções. Crianças-pr odígio são objeto de curiosidade porque exibem
habil idades e talentos de adultos. Gitanj ali Rao chama atenção por pensar , e ter
pr eocupações de gente grande do que pela essência da sua infância. E
assimétrica como todo pequeno prodígio.
Desse ponto de vista, a categoria "cr iança do ano" é um despr opósito, por mais
inspiradora que a menina seja. Seria mais apropriado que a exaltassem como
"pessoa do ano" de uma vez, ta l como fizeram com Greta Thunberg. A minha
observação final é que parece que estão esquecendo que cr ianças pr ecisam de
maturação emocional para se tor narem adultos razoavelmente saudáveis - a
maturação emocional está também pr evista pela massif icação da infância
iniciada mais de duzentos anos atrás. Trabalhar continuamente desde muito
cedo em favor de causas grandes e nobres é louvável moralmente, excelente
para a pr opaganda de certos movimentos, mas talvez seja pesado demais do
ponto de vista psicológico. Ser capa da Time aos 15 anos pode criar um adulto
frustrado lá adiante. Ou mais fr ustrado do q ue a média de todos nós. Esper o
estar errado e q ue Gitanjali Rao, assim como as outras "crianças do ano", não
estej a sendo sacr ificada no circo m id iático. Vidas infantis importam. 0