Conhecimento Prático Língua Portuguesa e Literatura - Edição 77 (2019-06)

(Antfer) #1
buscando por meio da enunciação superar o
seu oponente, as mulheres são altamente co-
operativas em suas conversações, buscando
apoiar e elogiar a contribuição das outras.
A questão de que as mulheres interagem com
o mundo diferentemente dos homens tem sido
discutida há anos, e o estudo de Coates e Tannen
expõe dados empíricos que podem dar uma pis-
ta do quanto a linguagem pode ser um guia para
a realidade social.(Ver box Hábitos Linguísticos)
No uso cotidiano da fala, segundo as auto-
ras, os homens procuram, quase sempre, rou-
bar a cena: falam um de cada vez, enquanto os
outros escutam, sobretudo se aquele que tem a
palavra é considerado um “especialista” naque-
le assunto. As mulheres, por sua vez, compor-
tam-se de maneira completamente diferente,
colaborando umas com as outras com pala-
vras de apoio e incentivo. A fala das mulheres
transforma-se, assim, em um empreendimen-
to cooperativo em que todas contribuem para
construir um discurso satisfatório que seja um
produto de todas, enquanto a conversação en-
tre homens transforma-se em uma se quência
de tentativas individuais.
Essas diferenças podem não apenas pro-
duzir desentendimentos gerados por uma in-
terpretação errada daquilo que o outro fala,
quando a conversação envolve homens e mu-
lheres, como também estimular uma visão
preconceituosa da fala da mulher.
Sob este aspecto é interessante notar de que
maneira certas palavras e expressões usadas
pelas mulheres, como “gracinha”, “fofo”, “ele é
um querido”, retratam não apenas um compor-
tamento linguístico próprio do gênero femini-
no, mas também revelam como foram constru-
ídas as relações entre homens e mulheres ao
longo do tempo.
Partindo quase sempre de modelos basea-
dos nos paradigmas da dominância e da dife-
rença, os estudos de linguagem e gênero a prin-
cípio dedicavam-se apenas à análise superfi cial
de algumas palavras e expressões isoladas.
Desde o esforço pioneiro de cientistas da
linguagem como PAMELA FISHMAN 2 , DALE SPENDER 3
e Deborah Tannen, no entanto, os estudos têm-
-se aprofundado e já é possível associar a esses
outros modelos e paradigmas que considerem

Os excertos citados, retira-
dos respectivamente das
canções Nervos de Aço,
de Lupicínio Rodrigues,
e A noite do meu bem, de
Dolores Duran, revelam a
partir de alguns padrões
linguísticos do senso co-
mum o quanto os nossos
hábitos linguísticos são
socialmente condiciona-
dos. A linguagem da can-
ção de Lupicínio é impreg-
nada de valores sexistas
que associam o amor a um
sentimento de posse e re-
velam um desejo de auto-
afi rmação em expressões
como “... em um braço/
que nem um pedaço do
seu poder ser” e “... ciúme,
despeito, amizade ou hor-
ror”. A canção retrata um
amor belicoso que termina
em um “... desejo de morte
ou de dor”, revelando um
dialeto social no qual a
relação entre homem e
mulher é tensionada por
uma correlação de forças
desigual. Já a canção de
Dolores Duran revela, pelo
estilo e pelo vocabulário,
alguns padrões linguís-
ticos característicos da
interação social das mulheres durante a década de 50 do século XX
no Brasil. Declarações como “eu quero toda a beleza do mundo/ para
enfeitar a noite do meu bem” revelam pelo conteúdo da linguagem,
gentil e afetuosa, uma delicadeza que aos poucos vai se transfor-
mando em hesitação e indagação: “já nem sei se terei no olhar/
toda ternura que eu quero lhe dar”. Analisada a partir do contexto
histórico e social em que foi produzida a canção, essa insegurança é
reveladora não apenas do tom mutável com que as mulheres podem
expressar suas emoções, mas também a maneira como os discursos
podem ser condicionados a fatores sociais e culturais diversos.
Sobre o universo histórico, social e cultural o qual Lupicínio e Dolores
escreveram suas canções é importante consultar o trabalho que é de-
senvolvido sobre a obra de ambos pela professora Maria Izilda Santos
de Matos, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP,
“Melodia e Sintonia em Lupicínio” e “Dolores Duran, experiências boê-
mias em Copacabana nos anos 50”.

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor
E por ele quase morrer
E depois encontrá-lo em um braço
Que nem um pedaço do seu pode ser
[...]
Há pessoas com os nervos de aço
Sem sangue nas veias e sem coração
Mas não sei se passando o que eu passo
Talvez não lhes venha qualquer reação

Eu não sei se o que trago no peito
É ciúme, despeito, amizade ou horror
Eu só sinto que quando a vejo
Me dá um desejo de morte ou de dor
Lupicínio Rodrigues. Nervos de Aço,
LP. RCA Victor, 1974.

Hoje eu quero a rosa mais linda que houver
quero a primeira estrela que vier
para enfeitar a noite do meu bem
[...]
Hoje eu quero o amor, o amor mais profundo
eu quero toda beleza do mundo
para enfeitar a noite do meu bem

Mas como esse bem demorou a chegar
eu já nem sei se terei no olhar
toda ternura que eu quero lhe dar
Dolores Duran. A noite do meu bem, 1959.
Long play (LP), Copacabana.

HÁBITOS
LINGUÍSTICOS

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