Conhecimento Prático Língua Portuguesa e Literatura - Edição 77 (2019-06)

(Antfer) #1
20 |LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA

Texto de Maria Beatriz

Maria Beatriz é jornalista e professora de Língua Portuguesa, especializada em Literatura.

E


m 2017 falaram dele. Esteve em todos os grandes cader-
nos de literatura ou culturais. Menos por sua obra que
pela grandeza do evento que o homenageava, a Festa
Literária Internacional de Paraty (FLIP) de 2017. De repen-
te, o negro, boêmio, rebelde, alcoólico, pobre, anarquista, inter-
nado duas vezes em um manicômio, ganhava o status que sempre
mereceu: o de grande escritor brasileiro.
Mas passou. Próximo de completar dois anos quase ninguém
mais fala em Lima Barreto. O esquecimento parece uma cons-
tante quando o assunto é esse escritor, que rompeu com o tom
formal do Parnasianismo, antes de os modernistas darem o
tom, a partir de 1922.
Neto de escravos e fi lho de pais livres, nascido no dia 13 de
maio de 1881, na mesma data em que sete anos depois a Lei
Áurea colocaria um fi m na escravidão, Lima abordou o tema a
partir de sua própria experiência. Sua obra, nesse sentido, é
extremamente autobiográfi ca.
Aff onso de Henriques de Lima Barreto teve uma infância contur-
bada: a mãe, uma negra livre, morreu quando ele tinha sete anos,
a isso seguiu-se a demência do pai, e, segundo um de seus mais
célebres biógrafos, Francisco de Assis Barbosa, um acontecimento
teria marcado profundamente sua infância de menino mulato,
órfão e descendente de escravos: a assinatura da Lei Áurea e os
festejos da Abolição, no dia em que completou sete anos. Já não
se diria o mesmo de outra data simbólica: o 15 de novembro de


  1. Sobre seu signifi cado, o próprio Lima Barreto afi rmou, em
    crônica incluída na obra póstuma Coisas do reino do Jambon, que
    “via-a com desgosto”, acentuando que, com o regime republicano
    ali inaugurado, o Brasil se tornara “uma vasta comilança”; era “a
    subida do partido conservador ao poder, sobretudo da parte mais
    retrógrada dele, os escravocratas de quatro costados”.


Negro, boêmio, rebelde, alcoólico,
pobre, anarquista, insano. Essas são as
credenciais do visionário Lima Barreto,
autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma,
que o Brasil teima em esquecer

Não espere de Lima Barreto uma literatura fácil, palatável.
Enquanto seu contemporâneo, o enorme Machado de Assis,
também negro e de origem humilde, era aclamado pelos críti-
cos por sua literatura elegante e dentro das normas, Lima, com
sua escrita à flor da pele negra, com seu vocabulário das ruas,
incomodava. É quase possível sentir a textura dos cabelos de
seus personagens, sentir a fé que professam, a maneira como
vivem, o tipo de habitação. Com isso, Lima Barreto antecipa-se
mais de um século e faz uma literatura negra por opção. Ela
já falava de feminicídio, corrupção, racismo naquela época.
Por isso, sua obra transpira atualidade. Para a antropóloga
Lilia Moritz Schwarcz, autora da biografi a Lima Barreto: Triste
Visionário, lançada junto à FLIP 2017, “... os personagens, nas
tramas, em escritos pessoais, a atenção para a questão racial e
as descrições dos tipos físicos dos personagens estão sempre
em evidência”, frisa.
Isso em uma época – o começo do século XX – em que mes-
tiços e negros eram considerados biologicamente mais fracos.
Lima vai na contramão do conceito e deixa isso bem claro em
seu Diário, em 1904: “A capacidade mental do negro é medida a
priori, a do branco a posteriori”

CACHAÇA, LITERATURA E MANICÔMIO
Em 1914, Lima Barreto foi internado pela primeira vez no
Hospício Nacional, no Rio de Janeiro, com o diagnóstico de al-
coolismo. O branqueamento de algumas celebridades e alguns
intelectuais corria solto. Com Lima foi assim: em sua fi cha lia-se
branco, abaixo sua foto desmentia a descrição. Mas se para al-
guns isso parecia benéfi co, não a ele, que a questão da negritu-
de e de o Brasil ser o último país a abolir a escravidão do mundo
foram temas centrais em sua obra.

O gênio maldito


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