Conhecimento Prático Língua Portuguesa e Literatura - Edição 77 (2019-06)

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Marques Duarte, estimulado pelas necessida-
des do País, que se organiza enquanto repúbli-
ca, o gênero é marcado pela presença de obras
estrangeiras traduzidas em edições portugue-
sas. Em virtude disso, no último quartel do
século XIX temos as traduções e adaptações
feitas por Carlos Jansen e Figueiredo Pimentel
de algumas obras, tais como: Contos seletos
das mil e uma noites (1882); Robinson Crusoé
(1885); Viagens de Gulliver (1888) e D. Quixote
de la Mancha (1901). Os clássicos contos dos
irmãos Grimm, Perrault e Andersen são di-
vulgados pelas obras Contos da Carochinha
(1894); Histórias da avozinha (1896) e Histórias
da baratinha (1896), todas organizadas por
Figueiredo Pimentel.
Duarte explica que antes da predominân-
cia de obras estrangeiras para o público infan-
til, evidentemente, o Brasil precisava produzir
uma literatura infantil própria, cujas histórias
se passassem em terras nacionais. Da mesma
forma que José de Alencar desenvolveu no
Romantismo um projeto para a formação da
literatura nacional, por conseguinte, haveria
de ter que se constituir uma iniciativa seme-
lhante com a literatura infantil. No Brasil, as
crianças careciam de uma consonância entre
a linguagem literária e a realidade do espaço
brasileiro, pois durante a leitura elas não se
identifi cavam com ambiente local e/ou nacio-
nal, visto que as obras estrangeiras representa-
vam os espaços europeus.
Nesse sentido, continua Duarte, a tentativa
de uma literatura infantil nacional, a partir do
modelo europeu, surge em 1886, com os Contos
infantis, de Júlia Lopes de Almeida e Adelina
Lopes Vieira. Na sequência, tem-se, em 1889,
o livro Pátria, de João Vieira de Almeida; em
1901, Por que me ufano de meu país, de Afonso
Celso; de 1904, os Contos pátrios, de Olavo Bilac
e Coelho Neto; em 1907, as Histórias da nossa
terra, novamente de Júlia Lopes de Almeida.
Essa última publicação inspirará Através do
Brasil, de Olavo Bilac e Manuel Bonfi m, obra
considerada o centro do cânone desse período.
Ainda de acordo com o pesquisador, o se-
gundo período da literatura infantil brasileira,
que se estabelece como o momento de conso-
lidação do gênero em pauta, inicia-se em 1920,
com a publicação de Narizinho arrebitado


Fabulista


desfabuloso
Segundo o professor, escritor e especialista em Educomunicação
Abrahão Costa de Freitas, Lobato é refém de uma irrefreável vocação
doutrinária e pedagógica. “O Monteiro Lobato fabulista parece, para
alguns, desconsiderar as especifi cidades do leitor infantil. Embora em
sua produção voltada para a criança se ouçam ecos de vozes tão distin-
tas quanto as dos maiores escritores da área, como Esopo, La Fontaine,
Andersen e irmãos Grimm, sua interação com o leitor infantil é compro-
metida pelo exagero de inserções didáticas e pelo excesso de redun-
dâncias de sua linguagem. E, embora seja quase unânime a avaliação
positiva que se faz de sua literatura infantil, há quem não pense assim
e veja muitos senões nas histórias oralmente contadas por Dona Benta
e Tia Nastácia”, explica.
Para esses críticos, esclarece Freitas, Lobato desconsidera o fato de
que, devido a sua pouca experiência de vida e de leitura, a criança
interage de um modo muito diferente do adulto. “Mesmo depois de
inseridas no mundo da leitura, a criança é um sujeito cultural que tem
na fala e na conversação seu principal instrumento de inserção e inte-
ração social, e essa especifi cidade precisa ser respeitada. E, ainda que
o desenvolvimento de suas funções psicológicas se dê na iteração com
diferentes contextos históricos e culturais, sua interpretação da reali-
dade não é a mesma do adulto”, diz.
O professor chama a atenção para o fato de Marisa Lajolo, em Monteiro
Lobato: um brasileiro sob medida, ir além das apreciações textuais e de-
fender que a saga do Sítio do Picapau Amarelo foi um verdadeiro “pro-
jeto literário e pedagógico sob medida
para o Brasil”. Ela baseia sua afi rmação
no fato de que, logo após publicar seu
primeiro livro, Narizinho arrebitado,
o autor transferiu a experiência de
editor de literatura adulta para a rea-
lidade mercadológica do livro infantil.
Conhecedor do papel fundamental da
escola e do Estado na difusão da lei-
tura, dá o primeiro impulso à sua obra
infantil distribuindo gratuitamente 500
exemplares de Narizinho arrebitado às
escolas públicas paulistas.
O tema, segundo Freitas, é polêmico
e requer um estudo minucioso, que
vá além dos achismos. E, embora o
racismo em Monteiro Lobato seja
uma questão que em muito incomoda
admiradores e estudiosos, é preciso
que a representação do negro em sua
obra seja estudada com muito rigor e
honestidade intelectual para que todos
os equívocos sejam esclarecidos e o verdadeiro valor de sua obra infan-
til seja resgatado. Até lá a atitude mais sensata é reavaliar a maneira
como organizamos nossa vida social e as relações de poder que isso
implica. “Disso já falava Octavio Paz há muito tempo”, conclui.

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A MENINA DO NARIZINHO ARREBITADO:
o livro, que apresenta suas duas
personagens principais, Narizinho e
Emília, foi relançado em 1921, no livro
Narizinho Arrebitado, que é o mesmo
livro, mas com aventuras inéditas.

   

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