Conhecimento Prático Língua Portuguesa e Literatura - Edição 77 (2019-06)

(Antfer) #1
LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 51

Buenos Aires. Anos depois, o escritor de quase
dois metros de altura forma-se em Letras na
Escuela Normal de Profesores Mariano Acosta
e começa a dar aulas em cidades vizinhas.
Iniciou sua vida profissional como professor
de escola no interior da Argentina. Em 1944,
foi contratado pela Universidade de Mendoza
para dar aulas de literatura francesa. Foi preso
em 1945, por participar, com os alunos, da ocu-
pação da universidade. Depois mudou-se para
Buenos Aires e, anos mais tarde, em 1951, para
Paris, onde iniciou a vida trabalhando como
tradutor da Unesco. Passou os 33 anos seguin-
tes na capital francesa – e só voltou sete vezes
para Buenos Aires.
Em 1966, Cortázar decide ser militante
dos movimentos revolucionários na América
Latina. Em 1973, publicou Livro de Manuel e ga-
nhou o Prêmio Médicis. Em 1976, com o golpe
militar na Argentina – a ditadura só terminaria
em 1983 –, o escritor cedeu seus direitos auto-
rais para ajudar organizações de defesa dos
direitos humanos, que tentavam conseguir a
liberdade dos prisioneiros políticos argentinos.
Em dezembro do mesmo ano, com o fim
da ditadura militar, ele viajou para Buenos
Aires para visitar sua mãe, Maria Hermínia
Descottes. Doente, sabia que estava em seus
últimos dias de vida. Cortázar morreu em
Paris, em 12 de fevereiro de 1984, aos 69 anos.
Falava-se em leucemia na época, mas, em 2014,
a jornalista Cristina Peri Rossi, amiga do es-
critor, disse que ele morreu de Aids, após ser
infectado numa transfusão, em uma época em
que a doença ainda não tinha estatísticas e se-
quer nome.

O MISTÉRIO DOS COMUNS
O primeiro conto a ser oficialmente pu-
blicado em uma revista, “nascido” para o pa-
pel depois de um sonho, é Casa Tomada, em
1947, editado por ninguém menos que JORGE
LUIS BORGES 1 , que mais tarde compõe a coletâ-
nea Bestiário. Pode-se observar, na leitura de
Bestiário, que em boa parte das histórias o des-
fecho ou as motivações dos personagens per-
manecem indefinidos. O mistério, ou melhor, o
enigma, ocupa posição central no livro, o que
leva a questionamentos do tipo: “Por que os

personagens de Casa Tomada, o primeiro con-
to, simplesmente abandonam sua casa, que foi
ocupada por algo que não é revelado? Será que
eles sabem o que invadiu sua casa? Se nem eles
sabem, por que abandonar a propriedade? Nos
oito contos do livro, aquilo que não é dito mui-
tas vezes é mais importante para a narrativa
do que aquilo que está explícito.
Os prêmios, o primeiro livro a causar furor,
já traz uma sintonia perceptível com a vida
real: nele, pessoas viajam de barco de Buenos
Aires à Europa sem parar. Pessoas comuns.
Para avisar que, no entanto, aquela é uma his-
tória fantástica, logo de cara encontramos a
advertência de DOSTOIEVSKI 2 : “O que um autor
faz com as pessoas vulgares, absolutamente vul-
gares, para apresentá-las a seus leitores de modo
a torná-las interessantes? É impossível deixá-las
sempre fora da ficção, pois as pessoas comuns
são em todos os momentos a chave e o ponto
essencial na cadeia de questões humanas; se as
suprimimos, perde-se qualquer probabilidade
de verdade”. Para corroborar o autor russo, Os
prêmios começa assim: “A marquesa saiu às 5h


  • pensou Carlos López – onde diabos eu li isso?.
    Estavam na confeitaria London, de Buenos Aires,
    na esquina de Peru e Avenida, e a partir dessa
    pergunta em que intervêm os diabos as pessoas
    começam a delirar. O resultado é a loucura, que é
    a razão envolta em mistério”.
    Em seus contos, o que parece uma contradi-
    ção transforma-se em uma nova ordem de liber-
    dade. Não aquela das coisas exatas, do tempo e
    espaço. Nos textos curtos de Cortázar, o que des-
    ponta é a suspeita de outra ordem mais secreta e
    menos comunicável – território da excepcionali-
    dade, onde os desvios falam mais alto do que as
    leis da razão. Na estranha história de um homem
    que vomita coelhos, ou de um congestionamen-
    to interminável, o acontecimento se irradia de
    tal modo que vai se tornar, como diz o autor em
    um de seus ensaios, “o resumo implacável de cer-
    ta condição humana, ou o símbolo candente de
    uma ordem social ou histórica”.
    Foi no romance, entretanto, que Cortázar
    desferiu seu golpe mais forte contra a realidade
    cartesiana e o realismo óbvio. No mosaico em
    dez passos de O Jogo da Amarelinha (ver box
    Denúncia Perfeita e Desesperada), as associa-
    ções de uma época ardorosa com o questiona-


JORGE FRANCISCO
ISIDORO LUIS
BORGES ACEVEDO
( 1899 - 1986 )
Foi escritor, poeta,
tradutor, crítico literário
e ensaísta argentino.

FIÓDOR
MIKHAILOVITCH
DOSTOIEVSK
( 1821 - 1881 )
Foi escritor, filósofo
e jornalista do
Império russo. É
considerado um dos
maiores romancistas e
pensadores da história.

OLIVEIRA
É um dos
personagens do livro
O Jogo da Amarelinha,
de Julio Cortázar.

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(^4) BEATRIZ SARLO
É escritora e crítica
literária argentina.
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