Conhecimento Prático Língua Portuguesa e Literatura - Edição 77 (2019-06)

(Antfer) #1
Sabemos que as crianças aprendem mais
através do exemplo do que pelas palavras.
Assim, se o habitus cultural de uma família
não é a leitura, dificilmente uma criança será
despertada para a leitura de forma autônoma.
Então, vamos começar pelo começo!

UMA PRÁTICA PRÉ-ESCRITA
Usei o termo “pré-escrita”, pois darei dois sig-
nificados distintos a ele. Como professor, a ana-
logia é com o processo de aprendizagem-escrita
sobre a leitura antes da existência do livro. Como
amante da história, a reflexão é Comecemos por
este último. Sabemos que a transferência oral
dos conhecimentos antigos foi a chave para a
propagação do conhecimento através das ge-
rações que antecederam a escrita. Evoca-se de
SÓCRATES 1 , o grande filósofo grego, uma oposição
ao registro gráfico do conhecimento, pois o en-
tendimento de Sócrates era de que a linguagem
escrita tolheria a liberdade da linguagem oral,
ferramenta primeva da sociedade ateniense, cha-
ve da MAIÊUTICA SOCRÁTICA 2. Mal sabia Sócrates a
que ponto a humanidade chegaria!
Pois bem, é evidente que antes da escrita
havia poesia, contos, histórias, lendas homé-
ricas – alusão a HOMERO 3 , que, pasme, querido
leitor, provavelmente era analfabeto de pai e
mãe! Então, será que Sócrates tinha uma certa
razão? Será que ao decorar (literalmente: tra-
zer no coração) os indivíduos eram livres para
ir e voltar em suas ideias, em seus “textos” e
não se prendiam nas definições encerradas no
texto escrito?
Tenho um bom exemplo de que talvez isso
seja uma verdade. Você deve lembrar-se de
quando não tínhamos aplicativos para indica-
ção de caminhos e mapas. Existia o “Guia de
Ruas”, um livro gigantesco, com o mapa de ruas
da cidade. Não era prático de ser utilizado e, via
de regra, pedíamos as indicações de caminho e
direção para quem já sabia como chegar a algum
destino. Assim, depois de ir uma ou duas vezes
ao mesmo lugar, já decorávamos o caminho,
não sendo necessária mais nenhuma ajuda.
Atualmente, eu não decoro mais os caminhos,
pois já condicionei meu cérebro a depender do
aplicativo e gastar menos ou nenhuma energia
em registrar o caminho. Talvez Sócrates tenha

razão! Talvez nossos repentistas, sem o uso da
escrita e da leitura, sejam mais “letrados” que
muitos graduados... Voltemos à pré-escrita no
contexto individual, pré-alfabetização. Existem
centenas de livros para crianças não alfabeti-
zadas, livros táteis, livros que contêm apenas
imagens, enfim, livros adequados a cada idade.
Esses instrumentos servem para duas finalida-
des principais: estabelecer o contato com o ob-
jeto “livro” e estimular a criatividade da criança,
finalidade esta que pode ou não ser influencia-
da ou estimulada pelo adulto.
Entretanto, assim como no exemplo do
Guia de Ruas, os meios eletrônicos cada vez
mais ocupam lugar privilegiado na atenção das
crianças, tanto pela multiplicidade de imagens
e sons quanto pela eficiência em dopar e domar
os pequenos, ou ainda, acrescendo uma funcio-
nalidade que era mínima na época da televisão,
a criança escolhe o que quer ver e por quanto
tempo quer ver um determinado conteúdo.
Em resumo, para uma criança de 2 anos,
que já foi exposta a pelo menos 1.000 horas de
internet, um livro estático é algo que pode não
despertar muita curiosidade. Logo, estimular
uma criança a interagir com um livro requer
tempo e dedicação.
Bem, diante dessas duas abordagens, en-
tende-se que a leitura, percebida enquanto
universo de absorção de conteúdos para um
processamento interno, precede a alfabetiza-
ção. Assim, seu desenvolvimento deve ter iní-
cio já na mais tenra idade, mas aí existe um
pequeno detalhe: o adulto! E então a roda gira
e voltamos à estatística de menos de três livros
lidos por pessoa no Brasil.
Por que desenvolver uma cultura leitora
parece ser um grande desafio? Porque de fato
é, e envolve um cenário cultural mais comple-
xo do que o simples ato de abrir um livro e ler.
Vamos pensar sobre isso.

QUAL O PROBLEMA?
Ler um livro é um sinal social e cultural. A
cada ano, vemos menos pessoas lendo espon-
taneamente, e cada vez mais o hábito da leitu-
ra parece denotar alguém diferenciado. Pode
parecer incrível, mas em uma rápida pesquisa
com pais de alunos, é possível verificar o baixo

(^1) SÓCRATES
(469 a.C - 399 a.C.)
Foi um filósofo
ateniense do
período clássico
da Grécia Antiga.
Creditado como um
dos fundadores da
filosofia ocidental, é
até hoje uma figura
enigmática, conhecida
principalmente
através dos relatos em
obras de escritores
que viveram mais
tarde, especialmente
dois de seus alunos,
Platão e Xenofonte,
bem como pelas
peças teatrais de
seu contemporâneo
Aristófanes. Muitos
defendem que os
diálogos de Platão
seriam o relato
mais abrangente
de Sócrates a ter
perdurado da
Antiguidade aos dias
de hoje.
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