Psique - Edição 135 (2017-05)

(Antfer) #1

30 psique ciência&vida http://www.portalcienciaevida.com.br


ATUALIDADE


A REPRESENTAÇÃO DE SI MESMO


PARA SABER MAIS


S


egundo a mitologia grega, Narciso era filho do deus Cefiso e da ninfa Liríope,
e, apesar de ser muito belo e atraente, preferia viver sozinho. Ao ser alvo de
mais um dos muitos amores por ele não correspondidos, Narciso acaba sendo
amaldiçoado com a seguinte sina: dali em diante, o seu amor (aquele por quem
ele se apaixonasse) seria tão intenso quanto impossível de se concretizar. Certo
dia, ao se inclinar para beber das águas cristalinas e límpidas do lago de Eco (uma
ninfa das montanhas que, anteriormente, também se apaixonara pelo belíssimo
protagonista do mito), Narciso se encanta ao ver a sua imagem ali refletida – sem
saber ser ela uma simples representação de si mesmo, espelhada na água – e por
ela se apaixona, tentando inutilmente alcançar o próprio reflexo (Guasco, 2009). O
desfecho da história mostra que Narciso foi tragado pelo rio, nascendo uma flor
solitária no local de sua morte, o “narciso”.

muito raras, se levarmos em conta as
teses psicanalíticas. Digamos, por meio
de uma alegoria, que uma ação altruís-
ta que não visasse (simultaneamente)
embelezar a minha própria imagem
deveria ser ao mesmo tempo uma ação
“escondida”, não somente do outro, mas
também de mim mesmo.
Uma ação que desconhecesse a si
mesma seria, como afirma o zen-bu-
dismo (bastante estudado por Jacques
Lacan), uma ação “Não-Eu”; ou, ainda,
sob a mesma óptica, uma “Não-ação”.
Ao postar algo compartilhado em uma
rede social, ao contrário de desconhe-
cer minha própria ação, redobro, isso
sim, a atenção que nela é colocada e,
dessa forma, transformo aquela ação
em alguma forma de ornamento do
Eu, em uma formulação da minha au-
toimagem duas vezes replicada: a mim
e ao outro. O ideal de Eu – o narcisismo


  • é então alimentado.


Qual limite?


C


hega-se aqui a dois caminhos di-
versos: o da ação altruísta que
culmina em alimento do Eu pelo reco-
nhecimento público, via rede social; e
o da ação altruísta que desconhece a si
mesma e que não se duplica em favor de
minha autoimagem. Diante das arma-
dilhas do amor narcísico, suspendemos
a resposta de nossa questão inicial e a
elevamos à qualidade de um novo ques-
tionamento: qual seria o limite entre,
por um lado, me despojar do Narciso
que há em mim, em direção ao outro, e
(contraditória e simultaneamente), por
outro lado, alimentar meu Eu com uma
satisfação que pode ser mensurada por
likes e por compartilhamentos?
Sem querer tachar o compartilha-
mento de postagens como algo que con-
tenha em si a essência da ação narcísica,
é importante apontar para as possíveis
armadilhas que o Eu prepara para ele
mesmo quando, por vezes, ao se dire-
cionar a um objeto externo não perce-
be ser esse objeto uma duplicação de si
mesmo (do Eu), que é por si só investido

ideais, construídos socialmente e in-
teriorizados via identificação. Assim, é
possível, por exemplo, que uma criança
entenda o tipo de ação que é valorizada
socialmente (ideal) e aquela que não é.
Dessa forma, essa criança buscará agir
(ou demonstrar aos outros que age) de
acordo com esse ideal, uma vez que está
em jogo o amor do outro, agir como o
outro espera (ideal) ou como o outro
age (identificação) “garante” de alguma
forma que eu seja amado ou no mínimo
amável. É com base nesses elementos
que Freud postula uma posição do su-
jeito em que esse investe a si mesmo de
libido, ainda que esse “si mesmo” seja
apenas uma “imagem de si”.

Valoração social


V


oltando ao problema inicial, isto
é, o ato de postar, de publicar em
redes sociais algo a respeito de uma
ação altruísta. O engodo e a contra-
dição aqui residem no fato de que, ao
mesmo tempo em que tal ação deveria
ser indicativa de um investimento libi-
dinal no outro, ela alimenta, também,
uma imagem de si. Assim, seria possí-
vel imaginar um altruísmo pleno, total
(sem ganhos para o Eu) nos termos da
Psicanálise? Podemos dizer que, a par-
tir da formulação da “segunda tópica
do aparelho psíquico” (que contém os
conceitos de “Eu”, de “Isso” e de “Su-

G
 IG

G


GGG\ 

 G9

G 
G
GGI

G 
 
I 
9
G
G
G

 GG 

pereu”, bem como suas relações e des-
dobramentos) – na qual Freud dá lugar
ao estudo do narcisismo secundário
(ideal do Eu) –, torna-se praticamente
improvável a existência de um altruís-
mo que não tenha lucros para o Eu, que
não alimente o Narciso que há em nós.
Ao postar algo em uma rede social
a respeito de uma ação voluntária, gene-
rosa (altruísta, de uma maneira geral),
passo a alimentar também uma imagem
do meu Eu nessa mensagem, que faz
apelo ao estético como valoração social
daquela mesma ação. Desse modo, reite-
ramos que, no âmbito das redes sociais,
ações exclusivamente altruístas seriam
Free download pdf