Melhor - Gestão de Pessoas - Edição 378 (2019-06)

(Antfer) #1
20 REVISTA MELHOR

ENTREVISTA


da vontade. Retomo Hamlet, no famoso monólogo do
“ser ou não ser”. Para mim, esse ser ou não ser signifi-
ca fazer ou não fazer. Porque o que nos define não é o
que pensamos, mas o que fazemos. E o príncipe Hamlet
prossegue: “O excesso de razão nos faz todos covardes”.
Muitas vezes, gastamos tempo e energia no processo
do planejamento e da estratégia, mas nos esquecemos
de que a vida sempre acontece da forma como não pla-
nejamos. A vida é aquilo que te acontece quando você
está ocupado planejando a própria vida. Precisamos
mudar esse foco. Precisamos valorizar as outras duas
dimensões da experiência do humano, hoje desvalori-
zadas. Desde Descartes, que estabeleceu que existimos
porque pensamos – “penso, logo existo” –, acabamos
descartando as outras dimensões, que, segundo Aris-
tóteles, são a do afeto e da vontade. Por isso, creio que
o grande desafio da sociedade atual – e não apenas do
mundo corporativo – é resgatar essa tridimensionalida-
de da experiência humana, que não fica só no intelecto,
mas que parte do afeto, da inteligência e da vontade. É
nesse sentido que estaremos mais bem preparados para
enfrentar os desafios impostos pela vida.


E quais obras (e por quais razões,


sucintamente) indicaria para


quem quer começar novas conversas


consigo mesmo e com outros no


ambiente de trabalho?
Inúmeras (risos). Mas minha experiência nessa última
década de trabalho com a literatura clássica no ambiente
corporativo me mostra que algumas, em particular, têm
um poder mobilizador e humanizador extremamen-
te eficaz e interessante. A primeira que eu indicaria é A
morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói. Um livro pequeno,
porém extremamente denso, de leitura simples e praze-
rosa, que coloca em questionamento muito dos valores
e princípios que hoje são propalados, mas que também
causam boa parte dos adoecimentos, incertezas e frustra-
ções que vivemos na carreira e na luta por se manter ativo
no mundo do trabalho. Essa obra fala de um homem que
apostou toda sua vida e suas fichas na carreira, entenden-
do a felicidade como uma vida leve, decente e agradável.
Depois, quando está no auge da carreira, adoece. Ao
adoecer, começa a perceber a insustentabilidade daqui-
lo que criou, a falta de substância e de vida dentro dessa


Veja M aiS

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da entrevista de Dante Gallian.
http://www.revistamelhor.com.br

suposta carreira de sucesso
que havia lutado a vida in-
teira para conseguir. Penso
ser este um bom livro para
o início de um processo de
humanização nas empre-
sas, pois coloca as pessoas
em contato com o real pro-
pósito da vida. Se o propó-
sito da vida é simplesmente
se tornar um profissional
de sucesso, é preciso tomar
muito cuidado. Porque, no
final, corremos o risco de
não sermos nem um pro-
fissional de sucesso, nem propriamente uma pessoa. Um
outro texto do qual gosto muito é Hamlet, de William
Shakespeare. É um tratado sobre o homem moderno, a
tomada da consciência, o destino e o que nos cabe fazer;
o que cada um de nós tem de fazer diante desse mundo
desconsertado. Nas situações de liderança, por exemplo,
temos um mundo que precisamos consertar. Mas, como
fazê-lo? A obra traz um questionamento muito interes-
sante e libertador nesse processo, na medida em que
mostra que não basta apenas ter inteligência; é preciso ter
sensibilidade e coragem. Por último, gostaria de destacar
uma pequena grande obra de José Saramago, autor de
língua portuguesa. Chama-se O conto da ilha desconhe-
cida, que fala a respeito de um homem que sonhou em ter
um barco para ir ao encontro de uma ilha desconhecida.
Acho este conto extraordinário, muito bem escrito, e
que também fala a respeito de propósitos. E propósito
é, sem dúvida, um dos grandes temas discutidos atual-
mente no mundo corporativo. Mas o propósito deve ser
algo que transcenda metas e objetivos quantitativos.
Para mim, propósito tem a ver com propósito de vida.
E acho que sair em busca dessa ilha desconhecida é sair
em busca de nós mesmos, daquilo que está no nosso
âmago. Trata-se de uma narrativa que fala, ainda, sobre
liderança, trabalho colaborativo e inspiração.

Apenas com o


instrumento


da razão e do


planejamento


é impossível


lidar com a


complexidade


do mundo

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