O Tempo e a Restinga - Time and Restinga

(Vicente Mussi-Dias) #1

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A primeira providência da menina era ir com o irmão assistir
à abertura da cacimba no cômoro em frente à casa. Um verdadeiro
especialista, Caboclo sabia exatamente onde e como deveria
escavar. Olhávamos atentos e ansiosos à espera do veio de água
límpida surgir aos pouquinhos. Depois, ficávamos cheios de pena de
Caboclo carregando muitos baldes de água limpa nos ombros para
encher as talhas. Um ótimo contador de “causos”, Caboclo Rangel
preenchia nossos serões com sua fala peculiar e gestual marcante.
Sentados nos degraus da cozinha, ouvíamos, um tanto fascinados,
narrativas em que realidade e fantasia atiçava nossa imaginação.
Os dias da temporada de verão passavam rápido, era preciso
aproveitar cada minuto. Subir nos pés de ingá, nas goiabeiras, pescar
nos brejos atrás da casa, jogar baralho e varetas. O irmão fazia e
soltava pipas; a menina brincava de casinha. Passávamos o dia com
a água do mar no corpo porque a Mãe dizia ser saudável; assim
como, saudável para Ela, termos que tomar banho frio no chuveiro
de fora com maribondos nos espreitando.
À tarde, a Mãe costumava guiar a charrete até a Rua das
Flores para comprar pão na padaria de Seu Batista; sem deixar
de parar na barraquinha de Amaro Bacalhau. O Nordeste sempre
forte, friinho, exigia agasalhos. De charrete também íamos ao mar


  • programa preferido da Mãe - ou à casa de tios e famílias amigas.
    Outras coisas eram compradas na porta de casa. A cavalo, os locais
    traziam cestos com camarões pitu, siris, doces caseiros, queijos
    da roça. O chamado “Ó de casa!” nos levava todos à varanda, já
    antecipando o almoço de sábado com o Pai - camarões regados em
    molho de azeite e comidos com a mão, conforme tradição familiar.
    Outro costume era a engorda de um peru ou leitão para ser servido
    ao final da temporada ou em almoço com convidados.
    Brincadeiras e passeios mudavam quando o Nordeste
    parava. Mesmo fechadas as janelas após o sol se pôr, os insetos
    teimavam em entrar e voar em torno do velho lampião. Punha-se
    uma bacia com água no centro da mesa. As crianças sentiam um
    certo prazer em ver os bichinhos caírem na armadilha, afinal eles
    incomodavam muito. Sem vento...chovia. Sem sol...lia-se na rede.
    Com chuva, a parte de grama da Restinga se enchia de sapos e

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