Jornal de Letras, Artes e Ideias

(claudioch) #1

I


JL / 19 de junho a 2 de julho de 2019 • jomaldeletras.pt


sima, Loyola escreveu um romance
de busca, focado em um casal que
rompe o relacionamento, aumen-
tando o grau de dispersão por
umarealidadeconfusa.Enquanto
acompanhamos a separação de
Felipe e Clara e depois a procura da
amada que Felipe empreende, as
câmaras vão revelando de forma
exaustiva este outro agora, que
nada mais é do que um presente
que se fez absurdo. "Há 40 anos
foram fechados os institutos de
pesquisa", como fica dito no capí-
tulo "O presidente com Síndrome
de Ulmer", em uma referência aos
cortes na pesquisa.
Para dar conta disso, o autor se
vale ao longo de todo o romance
da enumeração. Pode ser apenas a
enumeração de palavras: "Te cha-
mam de comunista, de homofóbi-
co, de gay, filhodaputa, ateu, filho
de satanás, machista, defensor
de negros, amánte de sapatas,
trans" (p. 25). Ao interromper a
narração com estas listas, o autor
fragmenta ainda mais o texto.
Pode ser de cenas, que se sucedem
sem uma relação de causa e efeito
com a busca de Felipe, e que serve
também para sabotar a narrativa e
criar o ambiente caótico que o livro
quer comunicar sensorialmente ao
leitor.
.Entre os vários eixos des-
te romance polifónico, há de se
destacar um. No mundo extre-

LETRAS ·


alta tecnologia, de controle totàl,
há um movimento de volta ao
interior. Clara retorna à sua cidade
natal, Morgado de Mateus, para se
reencontrar com seus fantasmas
(foi vítima de violência sexual na
juventude) e também para o con-
vívio com a irmã. Este retorno é
uma forma de segurar o movimen-
to de desumanização gerado pela
tecnologia a serviço de políticos
corruptos e controladores. Nesta
passagem, há a única cena bucólica
do romance. As duas irmãs vão
colher mexerica para f~er uma
velha receita de geleia. É o campo
como antídoto para a tecnologia
opressora. Isso permite que se
pense este romance como leitura
futurista de A cidade e as serms, de
Eça de Queirós.
E este paralelo não está fora do
conjunto de referências do roman-
ce. A cidade fictícia que o autor
criou é uma homenagem à Casa de
Mateus, em VIla Real, Portugal. Um
dos exemplares da edição mo nu-
mental de Os Lusíadas, feita pelo
quinto morgado da casa, estaria
com um político da cidade brasi-
leira. A Portugal profunda funciona
como um equivalente pátrio deste
outro Brasil.
No final, com a completa dis-
solução do tempo, há um encontro
impossível com Pedro Álvares
Cabral, recém-chegado para tomar
posse do Brasil, numa sugestão de
que depois do fim do pais é hora

de começar a construí-lo desde o
início. A presença do navegador
português é assim um vetor meta-
fórico para indicar um novo come-
ço, que também está representado
pela vida agrícola que Clara assume
na cena-chave ~o romance.
Publicado, no Brasil, em 2018,
Desta terra nada vai sobrar ... não
faz referência direta ao Presidente
Jair Bolsonaro, embora trabalhe
com os tumultos políticos que-
permitiram a sua desástrosa
assunção do cargo. Mas esta
distopia pode ser lida como um
retrato exagerado do caos vivido
no Brasil, mesmo quando temos
consciência de que o autor se
coloca contra um pais "divido
entre os Nós e os Eles" pelas
militâncias. É um romance que
eleva ao absurdo a existência
de zumbis e robôs ideológicos
entre nós como uma forma de
alerta, lutando assim contra o
enlouquecimento coletivo de uma
nação.JL

> IgndcioDe
Loyola Brandão
DESTA
TERRA
NADA VAI
SOBRAR ...
Teodolito, 360 pp.,
19,50euros
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