Jornal de Letras, Artes e Ideias

(claudioch) #1

·22· ARTES


João Lourenço


O teatro que voa


"Vitalidade e humor,, "melancolia e poesia, em A Golpada, no Teatro


Aberto, Lisboa. Um ~spetáculo que traz à boca de cena, de uma
"forma original e divertida,, jovens de hoje, precários e sonhadores,

personagens com urgência de outras vidas, como adianta ao JL o seu


encenador


. MARIA LEONOR NUNES


11 Sempre "imprevisível",
procurando que cada espetáculo
seja "diferente" e possa
"surpreender" o público. Essa
é, há décadas, a constante da
criação teatral de João Lourenço.
E interessa -lhe também que cada
espetáculo possa ser um palco
aberto ao que "vê da sua janela".
Por outras palavras, apresentar
peças que de alguma maneira
possam refletir o que se passa à
nossa volta, o tempo que vivemos.
A Golpada, em cena no Teatro
Aberto até 28 de julho, não é
exceção. Antes confirma a regra de
um teatro que procura outros voos.
Criado a partir de um texto
recente da dramaturga alemã Dea
Loher, A Golpada tem encenação
e cenários de João Lourenço,
dramaturgia de Vera San Payo
de Lemos, interpretação de
Ana Guiomar, Carlos Malvarez,
Cristóvão Campos, Rui Melo e
Tomás Alves .. A direção tnusical

é da responsabilidade de Renato
Júnior, o vídeo de Nuno Neves.
Uma "equipa ganhadora", diz o
encenador, que salienta ainda que o
espetáculo é um "fresco" de como
se vive hoje.

Jornal de Letnts: O que o fez 'cair'
nesta Golpada?
João Lourenço: É urna peça que
tem urna forma diferente de contar,
de apresentar a ação e dá urna
enorme liberdade a cada encenador
para construir o espetáculo. E eu
gosto sempre de fazer espetáculos
diferentes. Acabámos de fazer A
Verdade e A Mentira, duas peças
com os mesmos <].tores e cenários
e encenações diferentes ao mesmo
tempo.

Que tiveram uma grande
recetividade por parte do público ...
Tivemos, de facto, muito público.
Foi mesmo um sucesso, com os
dois espetáculos muitas noites
esgotados. E pensámos que
seria bom apresentar agora esta
comédia.

Que também faz pensar no presente
que vivemos?
Sim, tem um poúco a ver com o
que se passa hoje e que é dado de
urna maneira muito interessante.
Os protagonistas são dois jovens,
gémeos, precários. Ele trabalha
num armazém, ela vai trabalhando
em restaurantes, a descascar
batatas. Vivem precariamente,
vêm de uma condição baixa e têm
consciência disso e um humor
saudável. E passam o tempo a
sonhar ter uma vida bonita. .l!or
outro lado, a peça tem uma certa
dimensão poética.

Em que sentido?
No local onde eles habitam, há
uma série de personagens muito
estranhas, um homem que faz
filmes pornográficos mas gostava
de ser um Tarkovski, uma madame
vidente, meio homem, meio
mulher, e o dono da joalharia, um
tipo rico, mas farto da vida que
leva. Todos querem ser outra coisa,
sair do sítio onde estão e dizer
qualquer coisa à sociedade.

jomaldeletras.pt • 19 de junho a 2 de julho de 2019 / JL


Foi essa dimensão de sonho que quis
sublinhar?
A Golpada é um mosaico de
melancolia, poesia e ironia. E quis
que fosse muito dinâmica, veloz.

. Um pouco como hoje vivemos. As
personagens dizem que as suas
vidas são tristes, pobres e precisam
de mudar essa tristeza em alegria.
Não querem ser criminosos, mas
ganhar dinheiro rápido e para isso
fazem o mesmo que os banqueiros ...
(riso) Eles sonham voar para urna
liberdade através do roubo. E não
roubam para guardar ou para pagar
dívidas, mas para gozar a vida. E já.
O dinheiro, para eles, é para gastar
no presente. Essa circunstância do


Quis que fosse um
espetáculo muito
dinâmico, veloz, um
pouco como hoje

vivemos


imediato é algo que vejo em todo
o lado. E não só na juventude. É a
urgência de viver já tudo.

Procura dar a realidade
contemporânea?
Sempre. Se levei à cena A Verdade e
A Mentira é porque tem que ver com
o que está a acontecer, se apresento
O Pai é porque tem que ver com o
que se passa com as pessoas doentes
e idosas. Interessa-me o que vejo
da minha janela e as peças que
escolho têm que ver com o que se
passa na rua, à volta. N' A Golpada
mostra -se como a sociedade hoje
funciona, a pressa, o modo como
os jovens querem ser felizes, mas
agora, porqué não sabem como será
o futuro, a reforma. É outra vida e
não temos que a condenar.

O título da peça remete para um
famosO Obne, protagonizado por
Robert Redford. Foi intencional?
É verdade. A tradução exata do
alemão seria 'jogo de ladrões',
mas resolvemos chamar-lhe
Golpada por essas ressonâncias

de um filme muito divertido.
Claro que não tem nada a ver com
o próprio filme, mas com uma
ambiência divertida de jovens
que quisemos que o espetáculo
tivesse. E na realidade também
há um roubo, uma golpada naif,.
ingénua, e uns jovens que chegam
a Antuérpia cheios de diamantes.
Essa é a situação e nada é dito na
peça sobre o que se passou antes.
Pudemos inventar tudo. E como
criei o espetáculo com uma equipa
muito criativa, as ideias surgiram.
Quando encontramos um texto
como este, que nos dá uma
imagem e uma grande liberdade e
com a qualidade de poder inspirar
os atores, faz desde logo avançar .o
processo de criação.

Os atores, de resto, já são da casa.
Já trabalhei com todos eles.
Somos, como se diz agora, urna
equipa ganhadora, mesmo sem
recebermos medalhas e taças. (riso)
O espetáculo ficou realmente muito
leve e divertido, com música dentro.

Um quase musical?
Não propriamente. Consegui juntar
músicos e atores, aliás escolhi-os
porque todos tocam. E, às tantas,
nem se sabe quem toca, quem diz ...
Quis imprimir um ritmo, urna
grande vitalidade, através da música
e da interpretação dos atores. E eles
voam. No fundo, é urna história que
se conta no espaço onde gosto de
as contar, o teatro. E o público que
vier ao Teatro Aberto vai ter um
espetáculo que não tem nada a ver
com os anteriores. É isso que me
importa. E que seja um espetáculo
em aberto.

Porquê?
Porque não é só feito por nós, mas
por todos os espectadores que se
sentam e pensam e riem e choram.
Ao fim de todos estes anos de teatro,
eu também me sento ao lado deles,
continuo a ser espectador e ·a gostar
de ser surpreendido. Por isso, o meu
estilo é fazer sempre diferente.

Já antes tinha encenado uma peça
de Dea Loher, Os Imaculados.
Sim. Conhecemos bem a Dea
Loher, que é urna das melhores
dramaturgas alemãs. Esta é a
sua última peça, já apresentada
na Alemanha e na Holanda, mas-
com espetáculos completamente
diferentes, muito mais
melancólicos. A nossa golpada é
imprevisível e a autóra do texto
está muito curiosa, e disse-me que
escrevia peças precisamente para
que outros pudessem criar a partir
delas. Mas acho que quando ela cá
vier, vai ter urna grande surpresa
ao ver a sua peça à portuguesa.

E ·a seguir, o próximo espetáculo
será também sob o signo da
juventude?
Será: A Doença da Juventude, com
encenação da Marta Dias, a estrear
em outubro. Tivemos muitos jovens
que vieram ver A Verdade e A
Mentira e, falando deles, queremos
também apanhar esse balanço dL
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