Jornal de Letras, Artes e Ideias

(claudioch) #1

JL / 19 de junho a 2 de julho de 2019 • jomaldeletras.pt


ECOLOGIA VIRIATO SOROMENHO MARQUES


A calmaria antes


da tempestade


N


:s~:~.~~rl~e
oferece- nos ainda
temperaturas
amenas. O
dispositivo de
combate contra os incêndios
está atrasado na sua componente
aérea. Os responsáveis políticos
movem- se como generais em
tempo de guerra, antes de uma
grande e inevitável ofensiva de um
exército inimigo. Como nos longos
meses da drôle de guerre, entre
setembro de 1939 e maio de 1940,
na fronteira entre a França e a
Alemanha, Portugal espera, nestes
dias de calmaria, o inicio das
grandes batalhas que terão como
cenário operacional as florestas, as
matas e as aldeias rurais deste pais.
Apesar das tragédias de 2017, ainda
são poucos os que perceberam
que a vitória contra os incêndios
rurais implicaria um grande
esforço nacional, integrado numa
estratégia geral de longo prazo de
adaptação às alterações climáticas.
Quem faz hoje política, vive como
os gestores das grandes empresas:
à flor do imediato, encontrando
recompensas no sucesso de
curto prazo. O "inimigo" vai ser
beliscado, mas não jugulado. E
um rua voltará a causar danos
e sofrimentos que só causarão
espanto aos néscios ?U arnnésicos.

AS LIÇÕES DA FICÇÃO Na grande
literatura é possível buscar inspira-
ção para tentar corrigir a medio-
cridade do real. A editora Campo
Aberto, que é também uma asso-
ciação cívica ambientalista, publi-
cou, numa edição cuidada até ao
mínimo detalhe, o mais conhecido
clássico do escritor francês Jean
Giono (1895- 1970): O Homem que
Plantava Arvores. Giono é um pio-
neiro das preocupações ambientais
e um atento observador do impacto
da ação humana sobre o território.
Nesta obra, ele cria um persona-
gem imaginário, Elzéard Bouffler,
que leva uma vida de pastor e ere-
mita numa vasta área do território
gaulês, onde os Alpes penetram na
Provença. A curta narrativa decor-
re, com grandes hiatos temporais,
ao longo de quatro décadas, um
tempo que coincide com as duas
guerras mundiais.
O contraste entre a destruição

bélica da Europa, às suas próprias
mãos - como é costume, pelo me-
nos desde a Guerra do Peloponeso


  • e a reconstrução da paisagem
    pela iniciativa de um só homem,
    que todos os dias, carregando um
    saco de bolotas plantava carvalhos
    (e outras espécies) em serras e en-
    costas antes devastadas pelo corte
    indiscriminado de bosques e pelo
    pastoreio intensivo, ensina ao leitor
    uma lição de ecologia aplicada. O
    crescimento da floresta autócto-
    ne desencadeia um processo de
    revitalização de todo o ecossiste-·
    ma, que passa pela amenidade do
    microclima, pelo aumento da plu-
    viosidade e do caudal dos regatos,
    pelo regresso da vida selvagem,
    pela lenta recuperação da fertilida-
    de do solo. Nesse quase meio-sé-
    culo, as populações regressam, as
    aldeias abandonadas e em ruínas
    repovoam- se e reconstroem- se,
    e tudo isto ocorre, sobretudo para
    alguns dos " técnicos'' vindos de
    Paris, como se fosse um milagre da
    Natureza ...
    O livro, de capa dura, está mui-
    to bem traduzido por Abilio Santos
    e ilustrado profusamente com um
    traço belo e sóbrio por Teresa Lima.
    A obra é enriquecida por um ins-
    trutivo posfácio de Paulo Ventura
    Araújo, sobre o valor e utilidade,
    sempre ligada a um tipo de solo e
    também a uma função específica,
    das diferentes espécies de árvo-
    res. Por último, José Carlos Costa
    Marques, o coordenador geral da
    obra e uma figura histórica do am-
    bientalismo português, escreve um
    pequeno ensaio sobre Jean Giono
    e a sua luta por uma habitação
    humana do território em simbiose
    com a Natureza.


''


Trazer ordem a quase
40% do território
português exigirá
mais do que 40 anos,
por isso a viragem de
orientação e método
deveria ter começado
ontem

FIRMEZA E PERSISTÊNCIA
Quem releia Quando os Lobos
Uivam (1959) de Aquilino Ribeiro,
percebe que o que sucedeu às
nossas áreas arborizadas também
não foi o resultado da maldição
da Natureza. As monoculturas do
pinheiro bravo começaram com o
ativismo do Estado Novo e a trans-
formação de Portugal no campeão
mundial do eucalipto.prosseguiu
com a cumplicidade, negligência
e incúria da III República. Trazer
ordem a quase 40 % do territó-
rio português -com a agravante
representada para a tarefa pela
aceleração não-linear da rutura
do equilíbrio climático - exigirá
mais do que 40 anos, mas, por isso

IDEIAS· 29


mesmo, a viragem de orientação
e método deveria ter começado
ontem. O principal obstáculo,
contudo, é a ausência de institui-
ções para a tarefa.
Há anos defendi que o.
Ministério do Ambiente deveria
fundir- se com o Ministério da
Defesa, tornando-se, ao lado do
Ministério das Finanças, no núcleo
duro das políticas públicas. Lá che-
garemos, e muito antes de a água
começar a molhar os passeantes no
Terreiro do Paço ... .JL

> JeanGiono
O HOMEM QUE
PLANTAVA ARVORES
Campo Aberto, 50 pp. 13 ,50 euros
Free download pdf