Crusoé - Edição 180 (2021-10-08)

(Antfer) #1

a encarnação do privilégio e da opressão, mesmo que seja motorista de


táxi ou pedreiro e que não tenha dinheiro para comprar a cesta básica.


O Brasil parece preso a duas possibilidades nas eleições de 2022: Lula e
Bolsonaro. Essa dualidade tem alguma relação com as narrativas
históricas que vingaram no país?


Na minha opinião, não. O fracasso do populismo de esquerda levou ao


populismo de direita. Moralismo rastaquera à parte, Bolsonaro foi eleito


prometendo redenção econômica, segurança pública e o fim da


corrupção. Não fez nada disso. Ele teve e continua tendo uma conduta


criminosa na pandemia do coronavírus. Bolsonaro foi o grande aliado da


peste. Agora, o fracasso do populismo de direita pode nos reconduzir ao


populismo de esquerda. Mas a verdade é que tudo tem muito pouco de


ideologia. O Bolsa Família tinha colocado a população nordestina no colo


de Lula. Quando veio o auxílio emergencial da Covid, essa população


migrou para o colo de Bolsonaro. Então, viu-se que era bobagem tratar as


coisas ideologicamente. A maioria do eleitorado nordestino não é de


direita, nem de esquerda — é subornável.


Alguma narrativa histórica está sendo deixada de lado?


O que está sendo escanteado pela universidade e pela mídia é a


necessidade de repensar em profundidade a experiência nacional


brasileira. Precisamos fazer isso por nossa própria conta e risco. Até


porque temos pela frente a passagem dos 200 anos da nação, com a


comemoração do bicentenário da Independência de 1822. O que está


sendo organizado para essa data é o apogeu da desconstrução nacional


pregada pelo identitarismo multicultural, agora com total apoio da elite


midiática. É o apogeu da paixão mórbida pela comemoração negativa,


como diz o sociólogo canadense Mathieu Bock-Côté. Penso que temos de


rever de forma radicalmente crítica nossa experiência nacional, mas em


um horizonte aberto e profundo. Não podemos fazer isso na base do


maniqueísmo rasteiro, na base da luta do bem contra o mal. Dou um


exemplo. Antes do movimento abolicionista das últimas décadas do


século XIX, ninguém no Brasil era contra o escravismo enquanto sistema.


Cada grupo queria somente livrar sua cara, não ser escravizado. Mas


ninguém se importava com a escravidão dos demais. Basta lembrar que


®®

Free download pdf