Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

20 Le Monde Diplomatique Brasil^ JANEIRO 2022


ALIMENTAÇÃO NO BRASIL


Assim como o tabaco esteve no centro do debate, a regulação dos alimentos
ultraprocessados deverá dominar as discussões de saúde pública no Brasil e
no mundo nos próximos anos e décadas. Não há mais como desviar o foco.
Trata-se de uma pauta cuja hora chegou

POR MARCELLO FRAGANO BAIRD*

Lobby na regulação


dos ultraprocessados


H


á doze anos, em 20 de agosto de
2009, a Anvisa conduzia uma au-
diência pública para debater a
regulação da publicidade de ali-
mentos não saudáveis no Brasil. A dis-
cussão, que já se arrastava por quatro
anos, encontrava seu clímax. O acirra-
mento fazia-se notar inclusive fisica-
mente, pois os grupos favoráveis e con-
trários à medida se postaram em lados
opostos no auditório.
A tensão revelou-se à tarde, quando
a indústria começou a questionar a
competência legal da agência para re-
gular o tema. Preocupado com a imi-
nente aprovação da norma, Edmundo
Klotz, presidente da Associação Brasi-
leira da Indústria de Alimentos (Abia),
ameaçou recorrer à justiça para barrar
a regulação: “Se não atender a nossos
interesses, nós procuraremos aquele
Estado onde estiverem nossos interes-
ses... Se for o caso do Judiciário, perfei-
tamente; se não for, não. Não é uma
ameaça, apenas o caminho natural das
coisas dentro da democracia. Se estiver
dentro daquilo que nós queremos, es-
tamos todos de acordo, senão não”.
A indústria da comunicação, repre-
sentada pelo vice-presidente do Conse-
lho Nacional de Autorregulamentação
Publicitária (Conar), Edney Narchi,
também se manifestou. Como dois me-
ses antes a Advocacia-Geral da União
(AGU) havia emitido parecer contrário
à regulação da publicidade de medica-
mentos, também da Anvisa, Narchi ar-
gumentou com o subprocurador-chefe
da agência que o mesmo raciocínio va-
lia para alimentos.
O funcionário da Anvisa, contraria-
do, retrucou que seu chefe, o ministro
da AGU, apenas apontara que partes do
regulamento feriam a ordem jurídica:
“E aí, infelizmente, em vez de dizer
qual era a parte que extrapolaria, que
pudesse remendar, ou seja, se cortar só
a mão, ele acabou mandando matar a
pessoa inteira”.

Àquela altura ainda não era possível
saber o desfecho do caso, mas essa con-
f lituosa disputa foi o marco da emer-
gência de um dos temas mais impor-
tantes de saúde pública no século X XI:
a regulação dos alimentos ultraproces-
sados para conter a epidemia de obesi-
dade e das doenças crônicas não trans-
missíveis (DCNT).

CONSEQUÊNCIAS
DA PUBLICIDADE NA SAÚDE
Quando a Anvisa iniciou esse debate,
os indicadores de saúde referentes às
DCNT, como diabetes, doenças cardio-
vasculares e câncer, já eram preocu-
pantes. Relatório da OMS aponta que
essas doenças seriam responsáveis por
cerca de 60% das 58 milhões de mortes
previstas para ocorrer no mundo em
2005, bem acima do número de mortes
por doenças infecciosas. O maior im-
pacto ocorreria nos países mais pobres,
respondendo por 80% das mortes.
Os principais fatores de risco para
essas doenças, além de idade, sexo e
genética, estão relacionados ao com-
portamento, como uso nocivo de bebi-
das alcoólicas, tabagismo, sedentaris-
mo e alimentação inadequada. No caso
da alimentação, o controle da obesida-
de é crítico – a OMS estimava, em 2005,
que mais de 1 bilhão de pessoas apre-
sentavam sobrepeso, enquanto mais
de 300 milhões estavam obesas, o que
resultava em ao menos 2,6 milhões de
mortes por ano.
No Brasil, dados da Pesquisa de Or-
çamentos Familiares (POF) 2002/
mostravam que passava de 40% a popu-
lação adulta acima do peso e que quase
10% estavam obesas. A obesidade entre
crianças passara de 4,1% na década de
1970 para 14% em meados de 1990. Exi-
gindo cuidados e serviços de saúde con-
tínuos, as DCNT absorviam 69,1% dos
gastos do SUS com atenção à saúde.
Maus hábitos alimentares, como o
consumo de salgadinhos, biscoitos e

refrigerantes, são estimulados pelo se-
tor publicitário, cujos gastos são robus-
tos: em 2006, mais de R$ 1,7 bilhão fo-
ram investidos na publicidade de
alimentos, e outros R$ 423 milhões na
de refrigerantes. Pesquisa de 2006 do
Observatório de Políticas de Segurança
Alimentar da UnB identificou que 72%
dos anúncios voltados ao público in-
fantil em canais fechados eram de pro-
dutos não saudáveis.
Nesse cenário, a OMS lançou em
2004 a Estratégia Global para Alimen-
tação Saudável, Atividade Física e Saú-
de, marco no debate sobre o papel da
publicidade nos hábitos alimentares.
Embora tímido, sem defender explici-
tamente a regulação, o documento in-
f luenciou o Ministério da Saúde, que
passou a preconizar medidas regulató-
rias na área. Foi nesse contexto que a
Anvisa propôs uma regulação para dis-
ciplinar a publicidade de alimentos
não saudáveis no Brasil.

UMA DERROTA CABAL
Obviamente, o lobby do setor regulado
para tentar frear a iniciativa da Anvisa
foi enorme. Já em 2005, Abia e Conar
contrataram parecer para questionar
juridicamente a medida. Na sequência,
o Conar buscou esvaziar a iniciativa da
agência, alterando o Código Brasileiro
de Autorregulamentação Publicitária
para reduzir o apelo de consumo às
crianças e evitar a associação de certos
alimentos a benefícios.
Nada disso adiantou, e a Anvisa
propôs regulação abrangente. O 1º eixo
estipulava advertências, nas peças pu-
blicitárias, sobre os malefícios do con-
sumo excessivo de alimentos com altas
quantidades de açúcar, sódio, gordura
trans e gordura saturada. O 2º previa
restrições ao conteúdo, vetando, por
exemplo, o desencorajamento ao con-
sumo de alimentos saudáveis. O 3o eixo
restringia a publicidade infantil, proi-
bindo comerciais em rádio e televisão

entre 6 e 21 horas e vedando a publici-
dade em escolas e jogos eletrônicos. O
último pilar proibia a publicidade em
atividades esportivas e a distribuição
de amostras grátis ou brindes associa-
dos a programas educacionais.
A proposta, submetida a consulta
pública em 2006, gerou forte mobiliza-
ção, especialmente do empresariado,
que questionou a legalidade do regula-
mento, o impacto econômico e o aspec-
to técnico, alegando que não existiria
alimento bom ou ruim, apenas dietas
saudáveis e não saudáveis.
A pressão estendeu o processo até
2009, quando as empresas fizeram novo
movimento de antecipação, assinando,
cinco dias após a audiência, documen-
to pelo qual se comprometiam a limitar
a publicidade de alimentos e bebidas
feita a crianças menores de 12 anos.
A partir daí, tudo se acelerou. Sob
pressão e após reveses jurídicos, a An-
visa recuou e manteve apenas dois ei-
xos do texto: as advertências sobre con-
sumo excessivo e as restrições de
conteúdo.
Em 2010, após cinco anos de deba-
tes, a Anvisa aprovou a Resolução da Di-
retoria Colegiada n. 24, primeira norma
a regular a publicidade de alimentos
não saudáveis no Brasil. Tratava-se de
importante e pioneira medida de saúde
pública. Mas as celebrações duraram
pouco. Em rápida mobilização, os gru-
pos empresariais acionaram o ministro
Luís Inácio Adams, da AGU, que em dois
dias acatou a posição do Conar e reco-
mendou a suspensão da resolução da
Anvisa até avaliação definitiva.
Como órgão de consultoria jurídica,
causou estranhamento a frequente in-
terlocução da AGU com lobistas. Segun-
do relatos, foi na gestão de Dias Toffoli,
que havia pouco assumira vaga no Su-
premo, que isso se intensificou. Toffoli,
aliás, foi muito criticado, pois, após emi-
tir dois pareceres contrários à Anvisa em
regulações de publicidade, deu depoi-
mento em livro organizado pelo Conar.
O mais intrigante é que a AGU já ha-
via se posicionado favoravelmente à re-
gulação da publicidade de alimentos
em 2007, e mesmo o despacho reco-
mendando a suspensão da norma é elo-
gioso à resolução. Por isso, o diretor-
-presidente da Anvisa, Dirceu Raposo
de Mello, estranhava que a “AGU, em
algumas vezes, se manifestasse como
órgão de consultoria privado. Ela ser-
viu de órgão de consultoria para a in-
dústria farmacêutica e órgão de con-
sultoria para a indústria de alimento”.
A Anvisa ignorou a AGU e manteve
a norma. Ao menos onze associações e
sindicatos do setor privado recorre-
ram à justiça. Os juízes estavam diante
de uma posição dúbia do governo. Afi-
nal, havia uma agência propondo uma
regulação e, ao mesmo tempo, um ór-
gão de consultoria jurídica questio-
nando a norma.
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