Le Monde Diplomatique Brasil #174 Riva (2022-01)

(EriveltonMoraes) #1

JANEIRO 2022 Le Monde Diplomatique Brasil 33


Uma das questões que devem ser feitas
a um campo concerne a seu grau de auto-
nomia. Por exemplo, o campo jornalístico
é caracterizado, em relação ao campo da
Sociologia (e forçosamente em relação ao
campo da Matemática), por um elevado
grau de heteronomia. É um campo muito
fracamente autônomo, mas essa autono-
mia, por mais fraca que seja, significa que
parte do que se passa no mundo do jorna-
lismo só pode ser compreendido se pen-
sarmos nesse microcosmo como tal e nos
esforçarmos para entender os efeitos que
as pessoas envolvidas nesse microcosmo
têm umas sobre as outras.


LÓGICA E
FUNCIONAMENTO DO CAMPO
Mais ou menos a mesma coisa se apli-
ca ao campo político em sentido estrito.
Marx diz em algum lugar que o universo
político identificado com o mundo par-
lamentar é uma espécie de teatro, que
oferece uma representação teatral do
mundo social, da luta social, que não é
completamente séria, que é desreali-
zada, porque as questões reais, as lutas
reais estão em outro lugar. Ao fazê-lo, ele
indica uma das propriedades importan-
tes do campo político: esse campo, por
menos autônomo que seja, tem entre-
tanto alguma autonomia, alguma inde-
pendência, de tal forma que, para com-
preender o que nele se passa, não basta
descrever os agentes como estando a
serviço dos produtores de aço, ou dos
produtores de beterraba, como se dizia
em certa época, ou do grande patronato
etc. [...] É necessário também levar em
conta a posição que ele ocupa no jogo
político, se ele está do lado do polo mais
autônomo do campo ou, inversamente,
do lado do polo mais heterônomo, se
ele é membro de um partido situado do
lado mais autônomo ou menos autôno-
mo e, no interior desse partido, em um
status mais ou menos autônomo.
Na verdade, a parte que pode ser
explicada pela lógica do campo é tanto
maior quanto mais o campo é autôno-
mo. O campo político, embora esteja
sujeito, aparentemente, a uma pressão
constante da demanda, a um controle
constante de sua clientela (por meio do
mecanismo eleitoral), é hoje fortemen-
te independente dessa demanda e cada
vez mais inclinado a fechar-se sobre si
mesmo, sobre suas próprias questões
(por exemplo, as que dizem respeito à
concorrência pelo poder entre os dife-
rentes partidos e dentro de cada par-
tido). Uma parte muito importante do
que se engendra no campo político (e
é isso que a intuição populista apreen-
de) encontra seu princípio em cumpli-
cidades ligadas ao fato de pertencer ao
mesmo campo político. Retraduzido
para a língua antiparlamentarista, an-
tidemocrática, que é a dos partidos fas-
cistoides, essas cumplicidades são des-
critas como a participação em algum
tipo de jogo corrupto. Na verdade, esses


tipos de cumplicidade são inerentes ao
pertencimento ao mesmo jogo, e uma
das propriedades gerais dos campos é
que existem lutas dentro dos campos
para impor a visão dominante do cam-
po, mas essas lutas baseiam-se sempre
no fato de que os mais irredutíveis ad-
versários têm em comum aceitar certo
número de pressupostos que são cons-
titutivos do próprio funcionamento do
campo. Para lutar, é preciso estar de
acordo sobre os terrenos do desacordo.
Empreendi a descrição do campo
político sem especificar o que ele tem
em comum com o campo das Ciências
Sociais e com o campo jornalístico. Se
reuni esses três universos para tentar
pensar suas relações, é porque eles têm
em comum reivindicar a imposição da
visão legítima do mundo social; eles
têm em comum ser o lugar das lutas in-
ternas pela imposição do princípio de
visão e de divisão dominante. Nós nos
dirigimos ao mundo social com catego-
rias de percepção, princípios de visão
e de divisão que são, eles próprios, em
parte, o produto da incorporação das
estruturas sociais. Aplicamos ao mundo
categorias, como masculino/feminino,
alto/baixo, raro/comum, distinto/vul-
gar etc., por meio de adjetivos que cos-
tumam funcionar em pares.
Os profissionais da explicitação e do
discurso – sociólogos, historiadores, po-
líticos, jornalistas etc. – têm em comum
duas coisas: eles trabalham para explici-
tar princípios práticos de visão e de divi-
são; e lutam, cada um em seu universo,
para impor esses princípios de visão e
de divisão, bem como para fazê-los ser
reconhecidos como categorias legítimas
de construção do mundo social. Quan-
do tal bispo declara, em entrevista a um
jornal, que levará vinte anos para que
os franceses de origem argelina sejam
considerados franceses muçulmanos,
ele está fazendo uma previsão cheia de
consequências sociais. Esse é um bom
exemplo da reivindicação da manipu-
lação legítima das categorias de percep-
ção, de violência simbólica fundada em
uma imposição tácita, sub-reptícia, de
categorias de percepção dotadas de au-
toridade e destinadas a se tornar catego-
rias de percepção legítimas que é intei-
ramente do mesmo tipo que aquela que
se opera quando se desliza impercepti-
velmente de “islâmico” para “islamista”
e de “islamista” para “terrorista”.
Os profissionais da explicitação das
categorias de construção da realidade
e a imposição dessas categorias devem,
portanto, primeiro transformar os es-
quemas em categorias explícitas. “Ca-
tegoria” vem do verbo grego kategorein,
que significa acusar publicamente: os
atos de categorização utilizados na vida
cotidiana são frequentemente insultos
(“você não passa de um...”, “sua espé-
cie de professor”), e os insultos racistas,
por exemplo, são categoremas, como
dizia Aristóteles, isto é, atos de classifi-

cação, de ordenamento, fundados em
um princípio de classificação muitas
vezes implícito, que não precisa enun-
ciar seus critérios, ser coerente consi-
go mesmo. Em A ontologia política de
Martin Heidegger, a análise do campo
filosófico mostra que, sob certo núme-
ro de teses filosóficas centrais da obra
de Heidegger, existem taxonomias do
senso comum, como a oposição entre
“único” ou “raro” e “comum” ou “vul-
gar”, entre o “sujeito autêntico”, “único”
etc. e o “impessoal”, o “comum”, o “vul-
gar” etc. Essas oposições do racismo de
tipo ordinário – gente “distinta”, gente
“vulgar” – sendo reconvertidas em opo-
sição filosófica que mal se entende, fa-
dadas a passar despercebidas aos olhos
do professor de filosofia, de resto intei-
ramente democrático, que pode comen-
tar o famoso texto de Heidegger sobre o
“impessoal” sem se dar conta de que se
trata da expressão irrepreensível de um
racismo sublimado.

Aqueles que estão envolvidos nos
três campos mencionados trabalham,
portanto, para explicitar os princípios
de qualificação implícitos, práticos, para
sistematizá-los, para dar-lhes coerência
(ou, como no campo religioso, uma qua-
se sistematicidade). Em seguida, e desse
modo, lutam para impô-los, e as lutas pelo
monopólio da violência simbólica legíti-
ma são as lutas pela realeza simbólica. A
etimologia da palavra rex que Benveniste
apresenta no Vocabulário das instituições
indo-europeias mostra que rex pertence à
família de regere, que significa governar,
dirigir, e uma das funções principais do
rei é regere fines, delimitar as fronteiras,
como Rômulo e seu arado. Uma das fun-
ções das taxonomias é dizer quem está
in, quem está out, os nacionais, os estran-
geiros etc. Por exemplo, um dos dramas
da luta política na França hoje é que, por
meio da irrupção no campo de um novo
jogador, a Frente Nacional, o princípio da
divisão entre “nacionais” e “estrangeiros”
se impôs de maneira muito geral a todos
os agentes do campo político, em detri-
mento de um princípio que outrora pare-
cia dominante, a oposição entre “ricos” e
“pobres” (“Proletários de todo o mundo,
uni-vos!”).

IDEIAS VERDADEIRAS
E IDEIAS-FORÇA
Para além das questões comuns, é neces-
sário ver a lógica específica de cada um
desses campos. O campo político afir-
ma-se explicitamente como tendo por fi-

nalidade dizer o que se passa no mundo
social. Quando dois políticos discutem
com base em uma guerra de estatísticas,
o que está em jogo é apresentar sua visão
do mundo político como fundamentada,
fundada na objetividade, pois dotada de
referenciais reais, e também fundada na
ordem social, pela confirmação que rece-
be de todos aqueles que a assumem, que
se unem a ela. Em outras palavras, o que
é uma ideia especulativa se torna uma
ideia-força, por meio de sua capacidade
de mobilizar as pessoas fazendo que elas
adotem o princípio de visão apresen-
tado. A imposição de uma definição do
mundo é em si um ato de mobilização
que tende a confirmar ou transformar
as relações de força. Uma ideia se torna
uma ideia-força por meio da força que
ela manifesta impondo-se como princí-
pio de visão. A uma ideia verdadeira só
podemos opor uma refutação, ao passo
que a uma ideia-força devemos opor ou-
tra ideia-força, capaz de mobilizar uma
contraforça, uma contramanifestação.
O campo jornalístico, cada vez mais
heterônomo, isto é, cada vez mais sujei-
to aos constrangimentos da economia e
da política, da economia essencialmen-
te por meio dos pontos de audiência,
impõe cada vez mais seus constrangi-
mentos a todos os outros campos, em
particular aos campos da produção
cultural – como o campo das Ciências
Sociais, da Filosofia etc. – e ao campo
político. O campo é um campo de for-
ças e um campo de lutas, cujo objetivo
é transformar o campo de forças. Em
outras palavras, em um campo há con-
corrência pela apropriação legítima do
que está em jogo na luta nesse campo.
E no interior do campo do jornalismo
há uma concorrência permanente pela
apropriação do público, mas também
pela apropriação do que se pretende
dar ao público, ou seja, a prioridade da
informação, o furo, a informação exclu-
siva, e também a raridade distintiva, as
grandes assinaturas etc. Um dos para-
doxos é que a concorrência, dita sempre
condição da liberdade, tem, ao contrá-
rio, o efeito, nos campos da produção
cultural sob controle comercial, de pro-
duzir a uniformidade, a censura e até o
conservadorismo. Um exemplo muito
simples: a luta entre os três semanários
franceses Le Nouvel Observateur, L’ E x-
press e Le Point torna-os indistinguíveis.
Em grande parte porque a luta concor-
rencial que os opõe e que leva a buscas
obsessivas pela diferença, pela priorida-
de etc. tende não a diferenciá-los, mas a
aproximá-los. Eles roubam uns dos ou-
tros as primeiras páginas, os colunistas,
as pautas. Esse tipo de concorrência fre-
nética estende-se do campo jornalístico
para outros campos.

*Pierre Bourdieu, sociólogo (1930-
2002). Este texto condensa uma confe-
rência realizada na Universidade Lyon II,
em 14 de novembro de 1995.

Por meio da irrupção
no campo de um novo
jogador, a Frente Nacio-
nal, o princípio da divi-
são entre “nacionais” e
“estrangeiros” se impôs
Free download pdf