Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

pedacinho de si só para ter alguém.


*


Naquela tarde, depois de Chase ir embora, Kya saiu sozinha de barco e foi até o
brejo. Mas não se sentiu só. Acelerou um pouquinho mais do que de costume, o
cabelo comprido esvoaçando ao vento e um leve sorriso esboçado nos lábios. O
simples fato de saber que o veria de novo em breve, que estaria com alguém, a
alçava a um lugar novo.
Então, ao rodear um trecho de mato alto, viu Tate mais à frente. Ele estava
bem distante, a uns quarenta metros talvez, e não tinha ouvido o barco dela. No
mesmo instante, Kya soltou o acelerador e desligou o motor. Pegou o remo e
recuou até o meio do capim.
— Ele deve ter voltado da faculdade — sussurrou para si mesma.
Vira-o algumas vezes ao longo dos anos, mas nunca tão de perto assim. Mas ali
estava ele, com as mechas do cabelo despenteado saindo de outro boné vermelho.
O rosto bronzeado.
Tate estava calçando galochas que iam até as coxas e andava por uma lagoa
recolhendo amostras de água em frasquinhos. Não mais os vidros velhos de geleia
que eles usavam quando eram duas crianças descalças, mas frasquinhos que
chacoalhavam num suporte especial. Dignos de um professor universitário. Muito
além do alcance de Kya.
Ela não remou para longe. Ficou observando-o por um tempo, pensando que
provavelmente nenhuma garota esquece o seu primeiro amor. Soltou o ar, então
remou de volta na direção de onde tinha vindo.


*


No dia seguinte, Chase e Kya subiam o litoral rumo ao norte quando quatro
botos entraram na esteira da lancha e começaram a segui-los. O céu estava
nublado, e dedos de névoa se agitavam acima das ondas. Chase desligou o motor
e, enquanto a lancha seguia boiando, pegou a gaita e tocou “Michael Row the
Boat Ashore”, uma velha canção triste e melodiosa cantada nos anos 1860 pelos
escravos que remavam os barcos do continente até as ilhas da Carolina do Sul,
conhecidas como Sea Islands. Ma costumava cantá-la enquanto faxinava, e Kya
meio que se lembrava da letra. Como que inspirados pela música, os botos
chegaram mais perto e passaram a nadar em volta da lancha, seus olhos atentos
fixos em Kya. Então dois deles se aproximaram do casco, e ela baixou a cabeça até
poucos centímetros da deles e cantou baixinho:


Irmã,   ajeite  a   vela    do  barco,  aleluia
Irmão, também venha ajudar, aleluia.
Meu pai partiu não sei para onde, aleluia.
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