Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

46.


Rei do Mundo


1969


O mar e o céu de setembro cintilavam azul-claros com um sol brando quando
Kya se aproximou, com seu barquinho resfolegando, do cais de Pulinho para
pegar o horário dos ônibus. A ideia de viajar de ônibus com desconhecidos até
uma cidade estranha a deixava nervosa, mas ela queria conhecer Robert Foster,
seu editor. Fazia mais de dois anos que os dois trocavam bilhetes breves — e
também algumas cartas longas —, principalmente para discutir ajustes editoriais da
prosa e das imagens dos seus livros, mas a correspondência, composta em sua
maior parte por expressões de biologia misturadas a descrições poéticas, havia se
tornado um vínculo forjado numa linguagem própria. Ela queria conhecer aquela
pessoa do outro lado do papel que sabia como a luz comum se estilhaça em
prismas microscópicos nas penas dos beija-flores para criar a iridescência do
pescoço vermelho e dourado. E que sabia dizer isso em palavras tão vibrantes
quanto cores.
Quando ela pisou no cais, Pulinho a cumprimentou e perguntou se ela
precisava de gasolina.
— Não, obrigada, desta vez não. Preciso só anotar os horários dos ônibus. O
senhor tem uma cópia, não tem?
— Tenho sim. Está ali pregada na parede, senhorita, do lado esquerdo da
porta. Pode ir lá.
Quando ela saiu da loja com os horários, ele perguntou:
— Vai para algum lugar, Srta. Kya?
— Talvez. Meu editor me convidou para encontrar com ele em Greenville.
Ainda não tenho certeza.
— Ora, ora, isso seria muito bom, né? Greenville é longe daqui para caramba,
mas uma viagem ia fazer bem para a senhorita. — Enquanto Kya se virava para
embarcar outra vez, Pulinho chegou mais perto e a examinou com mais atenção.
— Srta. Kya, o que é que houve com seu olho? Com o seu rosto? Está parecendo
que a senhorita apanhou, Srta. Kya.
Ela desviou o rosto depressa. O hematoma deixado pelo soco de Chase, quase
um mês antes, havia desbotado até virar uma mancha tênue e amarela que ela

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