Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

decepção os uniu ainda mais, e eles raramente passavam mais do que algumas
horas por dia separados.
Às vezes Kya ia sozinha até a praia e enquanto o poente riscava o céu ela sentia
as ondas baterem no coração. Estendia a mão até o chão para tocar a areia e
esticava os braços para as nuvens. Sentindo as conexões. Não aquelas de que Ma e
Mabel tinham falado; Kya nunca teve um grupo de amigas próximas nem as
conexões que Jodie descrevia, pois nunca teve a própria família. Sabia que os anos
de isolamento haviam alterado seu comportamento, deixando-a diferente dos
outros, mas ter ficado sozinha não era culpa sua. A maior parte do que sabia havia
aprendido com a natureza. A natureza tinha cuidado dela, protegera-a e fora sua
professora quando ninguém mais quisera fazê-lo. Se o seu comportamento
diferente tinha consequências, então elas também eram aspectos da essência
fundamental da vida.
A dedicação de Tate acabou convencendo-a de que o amor humano é mais do
que as competições reprodutivas bizarras das criaturas do brejo, mas a vida
também lhe ensinou que genes antigos relacionados à sobrevivência persistem em
algumas formas indesejáveis entre as curvas e os meandros do código genético
humano.
Para Kya, bastava fazer parte dessa sequência natural tão certa quanto as marés.
Ela estava ligada ao planeta e à vida nele de um modo que poucas pessoas estão.
Solidamente enraizada nessa terra. Nascida dessa mãe.


*


Aos sessenta e quatro anos, o cabelo preto e comprido de Kya tinha ficado branco
como areia. Certa noite, como ela não voltou de uma expedição para coletar
espécimes, Tate saiu de barco pelo brejo à sua procura. Quando começava a
anoitecer, fez uma curva e a viu flutuando a bordo do seu barco no meio de uma
lagoa rodeada por sicômoros tocando o céu. Ela havia caído para trás, a cabeça
repousando na velha mochila militar. Ele chamou seu nome baixinho e, como ela
não se mexeu, chamou mais alto, depois berrou. Encostou a embarcação na dela e
subiu atabalhoadamente na proa do barco. Estendeu os braços compridos,
segurou-a pelos ombros e a sacudiu com delicadeza. A cabeça dela pendeu ainda
mais para o lado. Seus olhos nada viam.
— Kya, Kya, não. Não! — gritou ele.
Ainda jovem, tão linda, o coração dela havia parado sem alarde. Vivera o
suficiente para ver as águias-de-cabeça-branca voltarem, e para Kya isso havia
bastado. Envolvendo-a nos braços, ele ficou se balançando para a frente e para
trás, chorando. Enrolou-a num cobertor e a levou de volta até a lagoa a bordo do
velho barco pelo labirinto de córregos e estuários, passando uma última vez pelas
garças e veados.


E   a   donzela esconderei  num cipreste    aberto,
Quando os passos da morte chegarem perto.
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