Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

era o seu nome todo.
— Você consegue soletrar dez para nós?
Com os olhos fixos no chão, Kya ficou em silêncio. Jodie e Ma tinham lhe
ensinado algumas letras. Mas ela nunca tinha soletrado nada para ninguém.
Sentiu a barriga estremecer de nervoso; mesmo assim, tentou:
— D-e-i-z.
Risadas percorreram a fileira de carteiras.
— Shh! Silêncio! — gritou a Srta. Arial. — Não é para rir, entenderam, nunca
é para rir dos amigos. Vocês sabem muito bem disso.
Kya se sentou depressa em sua cadeira nos fundos da sala e tentou desaparecer
feito um besouro de casca que se camufla no tronco de um carvalho. No entanto,
por mais nervosa que estivesse, conforme a professora continuava a aula, ela se
inclinou para a frente, ansiosa para aprender o que vinha depois de vinte e nove.
Até então, a Srta. Arial só tinha falado sobre uma coisa chamada método fônico, e
os alunos, com os lábios formando O, repetiam os sons a, e, i, o, u, todos
arrulhando feito pombos.
Por volta das onze da manhã, o cheiro morno e amanteigado de pãezinhos e
massa de empadão no forno tomou conta dos corredores e invadiu a sala. A
barriga de Kya doía e se retesava, e quando a turma enfim formou uma fila e
marchou até o refeitório sua boca se encheu de saliva. Imitando os outros, ela
pegou uma bandeja, um prato de plástico verde e talheres. Uma janela grande
com uma bancada se abria para dentro da cozinha, e disposta na sua frente havia
uma travessa imensa e esmaltada de empadão de frango com uma casca
quadriculada de massa grossa em cima e um caldo espesso borbulhando. Uma
mulher negra, alta, sorridente e que chamava algumas das crianças pelo nome
serviu no seu prato um pedaço grande de empadão, depois um pouco de feijão de
corda na manteiga e um pãozinho. Ela recebeu um pudim de banana e uma
caixinha vermelha e branca de leite para pôr na bandeja.
Dirigiu-se para a área das mesas, a maioria delas cheia de crianças rindo e
conversando. Reconheceu Chase Andrews e seus amigos, que quase a tinham
derrubado da calçada com suas bicicletas, então virou a cabeça para o outro lado e
foi para uma mesa vazia. Várias vezes, em rápida sucessão, seus olhos a traíram e
relancearam os meninos, os únicos rostos que conhecia. Mas eles, como todos os
outros, a ignoraram.
Kya ficou encarando o empadão recheado de frango, cenouras, batatas e
pequenos grãos de feijão. A crosta marrom e dourada por cima. Várias meninas se
aproximaram, todas de saias rodadas afofadas por várias camadas de crinolina. Uma
delas era alta, magra e loura, outra era gordinha e bochechuda. Kya se perguntou
como elas podiam subir numa árvore ou num barco usando aquelas saionas. Com
certeza não podiam caçar sapos; elas nem sequer conseguiriam ver os próprios pés.
Enquanto elas chegavam perto, Kya ficou encarando o próprio prato. O que
diria se elas se sentassem ao seu lado? Mas as meninas passaram por ela, trinando
feito passarinhos, e se juntaram às amigas em outra mesa. Apesar da fome, ela
constatou que tinha ficado com a boca seca, o que tornava difícil engolir. Assim,
depois de comer apenas algumas garfadas, bebeu todo o leite, enfiou o máximo de

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