Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

No quarto dia depois de Pa ir embora, ela passou a montar vigia. No fim da tarde,
uma apreensão fria começou a dominá-la e sua respiração encurtou. Lá estava ela
outra vez, olhando para a estradinha. Por mais cruel que ele fosse, precisava que
voltasse. Por fim, no início da noite, ele apareceu caminhando pelos sulcos na
areia. Ela correu até a cozinha e serviu um ensopado de folhas de mostarda
cozidas, tutano de boi e mingau de milho. Como não sabia fazer molho, despejou
o caldo do tutano — no qual flutuavam pedacinhos de gordura branca — num
vidro de geleia vazio. Os pratos estavam rachados e não combinavam, mas ela pôs
o garfo à esquerda e a faca à direita, como a mãe tinha lhe ensinado. Então
esperou, espremida junto à geladeira feito uma cegonha atropelada na estrada.
Ele abriu a porta, deixando-a bater na parede, e atravessou com três passos a
distância da sala até seu quarto, sem chamar Kya nem olhar para a cozinha. Era
normal. Ela o ouviu largando a mala no chão, abrindo gavetas. Ele iria reparar na
roupa de cama trocada e no chão limpo com certeza. Se não seus olhos, seu nariz
perceberia a diferença.
Alguns minutos depois, ele saiu do quarto, foi direto até a cozinha e observou
a mesa posta e os recipientes fumegantes de comida. Encontrou-a em pé junto à
geladeira, e os dois se encararam como se nunca tivessem se visto na vida.
— Ora, menina, que que houve aqui? Parece que você ficou toda crescida,
hein? Cozinhando e tudo.
Ele não sorriu, mas seu semblante estava calmo. Tinha a barba por fazer, e seu
cabelo escuro e sujo pendia por sobre a têmpora esquerda. Mas ele estava sóbrio;
Kya conhecia os sinais.
— Sim, senhor. Fiz pães de milho também, mas não deu certo.
— Ora, ah, obrigado. Mas que menina boazinha. Estou destruído e com uma
fome de leão.
Ele puxou uma cadeira e se sentou, então ela fez o mesmo. Em silêncio, os
dois encheram os pratos e tiraram alguns fiapos de carne dos ossos de boi
mirrados. Ele ergueu uma das vértebras e sugou o tutano, e o suco gorduroso
reluziu nas suas bochechas ásperas. Ele chupou os ossos até deixá-los lisos como
fitas de seda.
— Isto aqui está melhor do que um sanduíche frio de couve — falou.
— Eu queria que os pães de milho tivessem dado certo. Eu devia ter colocado
mais bicarbonato e menos ovo. — Kya não acreditava que estava falando tanto,
mas não se conteve. — Ma fazia uns muito gostosos, mas acho que não prestei
muita atenção nos detalhes...
Então se deu conta de que não deveria estar falando sobre Ma e se calou.
Pa empurrou o prato na sua direção.
— Tem mais?
— Sim, senhor, tem um montão.
— Ah, joga lá um pouco desse pão no ensopado. Quero secar todo esse caldo
e estou apostando que esse pão está muito gostoso, molinho feito curau.
Ela sorriu enquanto servia o prato dele. Quem poderia imaginar que os dois
fossem encontrar no pão de milho um terreno comum.
Mas depois de pensar bem, Kya ficou com medo de que, se pedisse para usar o

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