Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

grossos feito a muralha de uma fortaleza. Ainda curvada, avançou
atabalhoadamente, arranhando os braços nos espinhos. Parou outra vez e escutou.
Ficou escondida ali, no calor escaldante, com a garganta ardendo de sede. Dez
minutos se passaram e ninguém apareceu, portanto ela se esgueirou até a nascente
que empoçava no meio do musgo e bebeu como um cervo. Perguntou-se quem
seria aquele menino e por que ele tinha ido até ali. Era esse o problema de ir ao
posto de Pulinho: as pessoas a viam lá. Feito a barriga de um porco-espinho, ela
estava exposta.
Por fim, entre o crepúsculo e o anoitecer, naquela hora em que as sombras
ficam incertas, ela refez o caminho até o barracão passando pela clareira de
carvalhos.
— Eles ficam espreitando por aí e eu não pesquei nenhum peixe para defumar.
No meio da clareira havia um tronco apodrecido, tão atapetado de musgo que
parecia um velho escondido sob uma capa. Kya chegou perto do tronco, então
parou. Cravada no tronco e apontada bem para cima havia uma pena preta e fina
de uns doze a quinze centímetros de comprimento. Para a maioria das pessoas
aquilo teria parecido comum, quem sabe a pena da asa de um corvo. Mas ela sabia
que era extraordinário, porque era a “sobrancelha” de uma garça-azul-grande, a
pena que se curva graciosamente acima do olho e se estende para trás, projetando-
se da cabeça elegante. Um dos mais belos fragmentos do charco litorâneo, bem
ali. Ela nunca havia encontrado uma pena daquelas, mas soube na mesma hora o
que era, afinal passara a vida inteira agachada diante de garças.
Uma garça-azul-grande tem a cor da névoa cinza refletida na água azul. E,
assim como a névoa, se mistura ao fundo da paisagem e desaparece por completo,
com exceção dos círculos concêntricos dos olhos alertas. É uma caçadora paciente
e solitária, que fica em pé sozinha o tempo que for preciso para capturar a presa.
Ou então, ao avistar a presa, dá um passo vagaroso de cada vez, feito uma dama
de honra predadora. Apesar disso, em raras ocasiões, ela caça voando, dispara e dá
um mergulho incisivo, feito uma espada com bico na ponta.
— Como é que ela ficou presa bem neste toco? — sussurrou Kya, olhando em
volta. — Aquele menino deve ter colocado aqui. E pode estar me observando
agorinha mesmo.
Ela ficou parada, o coração batendo com força outra vez. Então recuou para
longe da pena, correu até o barracão e trancou a porta de tela, algo que raramente
fazia, já que a proteção oferecida era ínfima.
No entanto, assim que foi amanhecendo entre as árvores, ela sentiu uma forte
atração pela pena, ao menos para vê-la outra vez. Quando o sol nasceu, correu até
a clareira, olhou em volta com cuidado, então caminhou até o toco e a pegou.
Era muito lisa, quase sedosa. De volta ao barracão, encontrou um lugar especial
para ela no meio da sua coleção — de minúsculas penas de beija-flor a grandes
caudas de águia — que se curvava pela parede. Perguntou-se por que um menino
lhe levaria uma pena.


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