Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

o resto do bando a mata, o que é melhor do que atrair uma águia que talvez possa
acabar levando um dos outros.
Uma fêmea grande arranhou a companheira desgrenhada com suas patas
grandes de garras duras, depois a imobilizou no chão enquanto outra fêmea
atacava seu pescoço e sua cabeça. A fêmea caída guinchava e lançava um olhar
aterrorizado para o próprio bando que a atacava.
Kya entrou correndo na clareira, balançando os braços.
— Ei!! Que que estão fazendo? Saiam daí. Parem com isso!
A revoada de asas levantou mais poeira quando os perus se espalharam na
direção dos arbustos, dois deles trombando com força num carvalho. Mas Kya
chegou tarde demais. A fêmea, com os olhos arregalados, estava inerte. Sangue
escorria do seu pescoço enrugado e todo torto no chão.
— Xô, saiam daqui!
Kya perseguiu as últimas aves grandes até elas se afastarem, arrastando as patas
pelo chão, seu trabalho concluído. Ajoelhou-se junto da fêmea morta e cobriu os
olhos da ave com uma folha de sicômoro.
Naquela noite, depois de ver os perus, jantou sobras de bolinhos de milho com
feijão e ficou deitada em sua cama na varanda vendo a lua encostar na lagoa. De
repente, ouviu vozes na mata se aproximando do barracão. Soavam nervosas,
estridentes. Eram meninos, não homens. Ela se sentou com um tranco. Não havia
porta dos fundos. Ou ela saía naquele instante, ou ainda estaria sentada na cama
quando eles chegassem. Rápida feito um camundongo, correu até a porta, mas
nesse exato instante velas apareceram se movendo para cima e para baixo, as luzes
se agitando em halos. Tarde demais para fugir.
As vozes ficaram mais altas.
— Estamos chegando, Menina do Brejo!
— Ei... você está aí dentro? Menina do Elo Perdido!
— Mostre para a gente os seus dentes! Mostre para a gente a sua aranha do
brejo!
Muitas risadas.
Ela se encolheu um pouco mais atrás da meia parede da varanda conforme os
passos iam se aproximando. As chamas das velas tremeluziam loucamente, então
se apagaram de vez quando cinco meninos, com uns treze ou quatorze anos,
atravessaram correndo o quintal. Todas as vozes se calaram enquanto eles vinham
a toda velocidade até a varanda e começavam a bater na porta de tela com as mãos
espalmadas.
Cada batida era uma punhalada no coração da peru fêmea.
Imprensada contra a parede, Kya quis choramingar, mas prendeu a respiração.
Eles poderiam arrombar facilmente a porta. Um tranco mais forte e estariam lá
dentro.
Mas eles recuaram escada abaixo e voltaram correndo para as árvores, uivando
e gritando com o alívio de ter sobrevivido à Menina do Brejo, à Menina Lobo, à
menina que não sabia soletrar dez. As palavras e os risos deles continuaram
chegando até ela pela mata enquanto eles desapareciam noite adentro e voltavam
à segurança. Ela ficou olhando para as velas novamente acesas que saltitavam por

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