Um lugar bem longe daqui

(Carla ScalaEjcveS) #1

tirou o batom. Logo antes de fechar a gaveta, viu um vidro de esmalte ressecado:
Quase Rosa.
Kya pegou o vidrinho, e lembrou o dia em que Ma tinha voltado da cidade
com aquele vidro de esmalte, algo muito inusitado. Tinha dito que combinaria
muito bem com a pele morena delas. Pôs Kya e suas duas irmãs mais velhas
sentadas uma ao lado da outra no sofá desbotado, disse para elas esticarem os pés
descalços e pintou as unhas dos pés e depois as das mãos das meninas. Então
pintou as próprias unhas, e todas riram e se divertiram se pavoneando pelo quintal
exibindo as unhas cor-de-rosa. Pa estava fora não se sabia onde, mas o barco
continuava atracado na lagoa. Ma deu a ideia de todas saírem de barco, algo que
elas nunca tinham feito.
As quatro subiram na embarcação velha, ainda animadas como se estivessem
bêbadas. Foi preciso puxar a cordinha algumas vezes para fazer o motor de popa
pegar, mas ele finalmente ganhou vida com um pulo e elas partiram, com Ma
manejando a cana do leme, e atravessaram a lagoa até chegar ao canal estreito que
dava no brejo. Foram deslizando pelos cursos d’água, mas Ma não conhecia muito
bem a região, e, ao entrarem numa lagoa rasa, elas encalharam na lama preta,
viscosa e grossa feito alcatrão. Empurraram daqui e dali com varas, mas não
conseguiram se mover. Não houve nada a fazer senão saltar do barco, de saia e
tudo, e afundar na lama até os joelhos.
Ma gritava:
— Não deixem o barco virar, meninas, não deixem ele virar!
Elas puxaram e empurraram até soltá-lo, dando gritinhos de tanto rir ao ver os
rostos enlameados umas das outras. Foi preciso algum esforço para embarcar
novamente, escorregando pelas laterais feito peixes fora d’água. E, em vez de se
sentarem nos bancos, as quatro se espremeram no fundo do barco, esticaram os
pés em direção ao céu e mexeram os dedos, as unhas cor-de-rosa brilhando
através da lama.
Ali deitada, Ma falou:
— Escutem agora o que eu vou dizer: o que aconteceu foi uma verdadeira
lição de vida. Sim, nós encalhamos, mas o que nós, meninas, fazemos? Nos
divertimos e rimos. É para isso que servem as irmãs e as amigas. Para ficarem
juntas mesmo no meio da lama, especialmente no meio da lama.
Ma não havia comprado acetona, então, quando o esmalte começou a sair e
lascar, elas ficaram com unhas cor-de-rosa desbotadas e falhadas nas mãos e nos
pés, lembrando-as da diversão e da lição da vida real.
Ao olhar para o velho vidro de esmalte, Kya tentou ver os rostos das irmãs. E
disse em voz alta:
— Onde você está, Ma? Por que você não ficou junta?


*


Assim que chegou à clareira de carvalhos na tarde seguinte, Kya viu cores vivas e
nada naturais destacadas em meio aos verdes e marrons discretos da mata. Em

Free download pdf