Apresentação | 9
ocontadordecausos
Naquele tempo, o tempo tinha mais tempo. Não existiam internet,
celulares e nem televisão nós tínhamos, nesse caso por falta de interes-
se. Por isso era um tempo de prosas e proezas, tínhamos um jipe de raça
e bom coração, tínhamos horizontes de serra e até mesmo um mar do
outro lado, desde que sobrasse valentia para cruzar pirambeiras.
Foi nessa época que conheci Marcos, Marcos Soares Ramos Cabete,
Marcão, personagem que com certeza daria recheio para um “Meu tipo
inesquecível”, como as antigas revistas Seleções traziam a cada número
mensal. Éramos amigos e estudantes, nessa ordem, faz uns trinta e bons
anos em Guaratinguetá. E lembro bem o dia que o conheci. Eu morava
em uma república, um quase pardieiro na Rua Visconde e precisávamos
de mais um colega para dividir as despesas. Colocamos avisos na Facul-
dade e aguardamos os interessados. Achar colega de república é coisa
séria e dificultosa. Quando já se tem amizade, fica tudo mais fácil, é só
pintar uma vaga, que lá se instala o amigo. Isso quando ele já não fica
dormindo no sofá, aguardando a chance. Mas não conhecíamos o
Marcão, todos os amigos estavam bem onde estavam e tivemos de arris-
car convocando interessados. Apareceu um, veio outro, ninguém con-
vencia ou mostrava predicados. Morar junto é coisa séria, há que se
escolher bem. Então em um sábado apareceu o Marcos, mais desconfi-
ado do que nós, trazendo uma garrafa de cana. Para bebericar, abrir
conversa, vai que o pessoal precise de assunto, deve ter pensado.
Proseamos um tanto, temas variados, percorrendo identidades. E aí
Marcão foi convidado a ficar. Reunia plenas condições.
Ali ficamos mais poucos meses, talvez um ano. Decidimos campear
por uma casa melhor, mais clara e arejada. Achamos e assim nasceu a
Gota, nossa república em frente ao majestoso Paraíba e nós, a gota
d’água que se pretendia capaz de entornar copos e tudo mais. E foi
então que nos conhecemos melhor, que aprendemos tanta coisa do
mundo e das gentes que vivem nele. Conhecemos uma espingarda mais
que secular, que tomou horas, semanas, meses da perseverança do Mar-
cos para limpar e descobrir por baixo da ferrugem, a marca e o ano,
provas incontestes da idade e da origem nobre. Foi nesse tempo que
aprendi como caçar gatos com anzóis sobre o muro e como comer
carne de cobra, trazida de longe e conservada com bom tempero em
vidro de boca larga. Um dia escondido, o danado copiou minha chave e
por semanas, até enjoar, sorrateiro trocava o jipe de lugar nos estaciona-
mentos onde o deixava, só para me atazanar e fazer eu me achar louco...