® Piauí ed. 185 [Riva] (2022-02)

(EriveltonMoraes) #1

Em 1936 casou-se com o advogado Paulo Setembrino de Carvalho Cruz (1913-85), com
quem teve dois filhos, Maria Elisa, minha avó, nascida no ano seguinte, e Paulo
Fernando, em 1941. Sabe-se lá por que motivo, todos na família pronunciavam seu
nome como “Mêri”. Ela morreu em 1999, quando eu tinha 10 anos.


Crianças não estavam entre as suas distrações preferidas. Lembro que era uma mulher
de amplo sorriso, elegante, sempre bem penteada, maquiada e enfeitada com joias. Eu
me recordo de vê-la sentada no sofá da casa da minha avó, fazendo palavras cruzadas
com uma grande lupa. Ou comendo bombons de cereja e garrafinhas de chocolate com
recheio alcoólico, que ela nunca me oferecia. Era uma senhora gulosa, apaixonada por
doces, embora devesse evitá-los por questões de saúde. Nunca a vi cozinhando.


Ela se casou sem nada saber de culinária e foi morar com a sogra, Adelina Villela de
Carvalho, a “Zizi”, que cuidava da administração da casa. Quando Zizi morreu, em
1953, “o caos reinou na cozinha”, conta minha avó, que na época estava com 16 anos e
teve que se matricular em uma escola de culinária para transmitir à mãe os
conhecimentos de forno e fogão. Minha avó ajudou na administração do lar até se casar
em 1957, quando Mary se viu novamente sozinha com suas empregadas. “Ela mesma
não sabia muito, mas aprendeu a fazer uma comida excelente, porque seguiu as
receitas com rigor”, conta minha avó. “Acabou se tornando uma ótima professora,
muito exigente, e ensinou várias cozinheiras.”


A história da minha bisavó reflete a de muitas mulheres brasileiras oriundas de
famílias abastadas. Criada para jamais colocar as mãos na massa, pois podia contar
com o trabalho dos empregados, abundantes e servis no período pós-escravidão, Mary
se viu um dia obrigada a mudar de rota.


Ao buscar no caderno da minha bisavó alguma receita que me inspirasse e


distraísse do iminente colapso da civilização, a minha formação como historiador logo
se manifestou. Comecei a tratar o manuscrito como um documento a ser analisado,
pois me pareceu que era um testemunho das transformações que afetaram não apenas
uma mulher, mas toda uma época.


Com 25 cm de altura e 17 cm de largura, capa dura revestida com tecido verde e bege
estampado com desenhos de ramos de bambu, o caderno tem apenas a palavra

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