® Piauí ed. 185 [Riva] (2022-02)

(EriveltonMoraes) #1

cozinha de Alba Cruz Livonius, sua cunhada, é um prato pretensamente requintado
cuja receita mulheres da elite trocavam entre si e só pode ter sido desenvolvida a partir
da década de 1960, pois utiliza certa dose de... ketchup.


Ao conversar com minha avó, descobri que o caderno era o documento de algo ainda
mais interessante. Como minha bisavó nunca aprendeu a cozinhar de fato, precisava
do caderno como um guia para comandar as cozinheiras. Por isso, nele não constam
receitas de pratos do dia a dia, uma vez que estas eram já do conhecimento das
empregadas. Por isso, também, minha bisavó não escreve “atum” ou “gelatina” ao citar
estes ingredientes, mas “atum CPC” e “gelatina Oetker”. Não sabendo manejar a
cozinha, a fidelidade às marcas era sua garantia de que as receitas sairiam sempre
iguais. Nenhum prato típico gaúcho consta do caderno, mas, ao gosto da época, Mary
anotou duas receitas de vatapá, uma delas sem camarão seco e com frango – prato que
meu bisavô apelidou de “vatapá sintético”, para desgosto da esposa.


Ahistória dos livros de receitas, desde o De Re Coquinaria (Sobre cozinhar), de


Marcus Gavius Apicius (25 a.C.-37 d.C.), até os posts do canal digital Tastemade,
poderia ser um capítulo da história da luta de classes, dos gêneros e etnias. Uma
grande distância separa quem se julga qualificado a escrever e coletar receitas e quem
se encontra na situação de simplesmente fazer a comida, sob as ordens de outrem. No
Brasil não há como falar de receitas e de cozinha sem considerar estes dois papéis
distintos: o da dona de casa, comumente branca e de posses, e o da cozinheira, em geral
pobre e negra.


Minha bisavó nasceu 25 anos depois da abolição da escravatura. Em sua infância e
juventude ainda perduravam noções presentes desde os primórdios da colonização,
entre elas a de que o trabalho pesado era algo indigno, destinado às classes
subalternas.


A cozinha não escapou desse anátema e foi, durante séculos, ocupada prioritariamente
pelos cativos. Até famílias menos abastadas cuidavam de ter um escravizado para
cuidar de sua alimentação, como demonstraram os historiadores Almir El-Kareh e
Héctor Bruit, ao apontarem como eram frequentes nos jornais cariocas anúncios de
compra e venda de cativos (de ambos os sexos) aptos ao trabalho doméstico e à
culinária “trivial”. [1]

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