® Piauí ed. 185 [Riva] (2022-02)

(EriveltonMoraes) #1

Em 1923 foi aprovado pelo presidente Artur Bernardes o decreto nº 16 107, a primeira
regulamentação da República sobre os serviços domésticos, aí incluídos os porteiros,
jardineiros, lavadeiras etc. – todo um conjunto de atividades que não merecera atenção
no Código Civil de 1916. Dentre os trabalhadores mencionados nesse decreto, estavam
“os cozinheiros”, mas não as cozinheiras (é significativo que os únicos serviçais de
cozinha regulamentados fossem homens, mantendo as cozinheiras na irregularidade).
O artigo terceiro do decreto prescrevia que cada um desses trabalhadores teria uma
carteira – um indicativo de sua situação regular e a garantia de alguma proteção legal.


Apesar de proteger muito mais o empregador do que o empregado, a nova legislação
gerou uma reação negativa da parte do patronato. Nessa época começaram a aparecer
na imprensa críticas à “falta de boas cozinheiras e criadas cuidadosas e constantes”, ao
mesmo tempo que surgiam palavras de incentivo às donas de casa para que
desenvolvessem suas habilidades culinárias. Um texto de 1924, da Vida Doméstica, a
“revista do lar e dos campos”, destacava:


As condições atuais da vida são tais que algumas donas de casa quase dispensam a cozinheira,
indo elas mesmo preparar os seus pastéis e cozinhá-los, quando não decidem efetuar outros
serviços leves da cozinha. Preferem, muitas vezes, fazer por suas próprias mãos os pratos mais
do seu agrado – especialmente aqueles que não estragam nem sujam as mãos. É notória a falta de
boas cozinheiras e criadas cuidadosas e constantes. Esta falta está se verificando em toda a parte.
Não admira, portanto, que as donas de casa tomem as suas providências no sentido de não sentir
inteiramente a sua falta. Para a remediar, embora não exista evidentemente o desejo de dispensar
as cozinheiras, muitas senhoras já se vão familiarizando com a cozinha. Foram inventados, para
esbater a sua falta, alguns instrumentos de fácil manuseio e que evitam alguns trabalhos
demasiadamente penosos para quem não tem o hábito da cozinha. Quase todos eles são de
agradável aspecto, alguns até interessantes.


Dois processos começam a se formar. De um lado, tem-se um discurso ofensivo aos
empregados, acusando-os, coletivamente, de serem falhos e mal preparados (é o
surgimento da imagem da “empregada insubordinada ou insolente”) e, como solução
ao impasse, a sugestão de que as donas de casa encarassem elas mesmas o serviço
culinário. De outro, percebe-se o início da difusão de transformações tecnológicas na
cozinha. Ambos os processos se encontrarão nas figuras da “dona de casa” e da “rainha
do lar”, a mulher que domina a dinâmica familiar e os instrumentos domésticos como
ninguém.


A construção da tríade mãe-esposa-administradora da casa é evidentemente parte de
um movimento conservador e machista que tenta limitar os anseios de autonomia das
mulheres ao mundo restrito da vida doméstica. No alvorecer dos anos 1930, as
mulheres começavam a obter alguma liberdade. Desde 1932, já estavam autorizadas a

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