® Piauí ed. 185 [Riva] (2022-02)

(EriveltonMoraes) #1

Como no conto roseano, a história se passa numa enorme casa rodeada por um jardim
que parece suspensa no tempo e no espaço, e também transita na fina linha entre
memória, sonho e realidade. “Então, o fato se dissolve. As lembranças são outras
distâncias. Eram coisas que paravam já à beira de um grande sono”, escreve Rosa.
Tanto Oliverio quanto o “menino” de Nenhum, Nenhuma estão imersos nas fantasias e
alegrias da infância ao mesmo tempo que na descoberta do mundo e suas angústias. E,
no meio disso, fantasias e descobertas da – e na – linguagem. Há também,
inevitavelmente, paralelos com a história familiar de Peri Rossi e sua própria infância,
sobre as quais a autora se debruça em seu último lançamento, o romance
autobiográfico La Insumisa (2020). Nele, Peri Rossi narra que a avó morava em uma
casa com muitos quartos e um extenso jardim onde ela passava os dias, construída por
seus bisavós, imigrantes genoveses, que tiveram catorze filhos ao longo de quinze anos.
“O fundo da casa da minha avó era grande como o Paraíso que falavam na igreja, e
como o Paraíso que falavam na igreja, estava povoado de animais diversos, em estado
selvagem, que fugiam dos humanos e levavam uma vida solitária e perigosa.”


Ao fim de El Libro de Mis Primos, Oliverio, muito incomodado com o que o resto da
família diz sobre Federico após a fuga, começa uma revolução dos primos contra os
adultos com uma pedra que magicamente voa pela casa enquanto as crianças brincam
de “soldados e guerrilheiros”, destruindo-a e matando os parentes mais velhos.
Federico e seu grupo, por sua vez, conseguem invadir a cidade, numa página final que
também ecoa Rosa: “Na noite calma, branca, mansa, entramos na cidade como homens
de paz, mas protegendo-nos nas sombras que permitem os parapeitos das casas e as
claraboias. Noite de verão, noite calma. Nem às crianças se ouve chorar, essas crianças
que sempre choram ao longe nas noites de verão. Cada um sentiu sua nostalgia, sua
nostalgia de coisas e de casas. [...] e Rafael se aproxima, companheiro, às ordens,
estamos prontos, e Rafael sorri, como nunca, na noite branca de cartolina noite branca
claranoite contente põe seu braço sobre meu ombro sorri. É a hora. CHEGAMOS.”


Peri Rossi afirmou certa vez que esse foi o primeiro livro uruguaio que trabalhava a
temática dos grupos de guerrilha. Sendo essa informação exata ou não, é certo que seu
trabalho estava não só a par dos feitos e desejos da juventude revolucionária, mas
apontava novas direções, políticas e estéticas para a literatura uruguaia. Na própria
forma do livro, que não apenas alterna poesia e prosa como as fusiona, de modo que se
torna impossível definir o limite entre uma e outra, é explícito o movimento desafiador
às normas de gênero. Um desafio que se reflete também no sentido do gênero enquanto
construção social – presente em sua obra desde as primeiras publicações. Mas se as
obras desse período carregam um tom esperançoso em relação ao futuro, jogando com
a possibilidade palpável de uma mudança radical no destino do país, o crescente
autoritarismo e a repressão por parte do Estado uruguaio logo frearam as expectativas

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