habituadas a esperar de outras mãos a execução dos gestos mais indispensáveis
à minha sobrevivência. Que esse estado de coisas não era definitivo eu sempre
soube, em teoria; em teoria minhas mãos não esperam outra coisa além de
reconquistarem suas aptidões para executar todos os trabalhos manuais do
homem, tal como quando a natureza inclemente cercava o homem armado
somente das próprias mãos, tal como hoje nos cerca o mundo mecânico,
decerto mais fácil de ser manipulado do que a natureza bruta: o mundo onde, de
agora em diante, as mãos de cada um de nós deverão de novo se virar sozinhas,
não mais podendo solicitar de mãos alheias o trabalho mecânico de que depende
a vida de todo dia.
Na prática, minhas mãos estão um pouco decepcionadas: o funcionamento
da bomba é tão mais simples que a gente fica pensando por que, afinal, o uso do
self-service não se difundiu há mais tempo. Mas a satisfação de fazer algo por si
mesmo não é muito maior do que aquela que resulta de um distribuidor
automático de balas ou de outra engenhoca caça-níqueis. As operações que
exigem certa atenção referem-se apenas ao pagamento: basta enfiar uma nota
de mil liras numa gavetinha, na posição certa, de modo que um olho fotoelétrico
reconheça a efígie de Giuseppe Verdi ou talvez apenas o fino fio metálico que
cruza cada nota de dinheiro. O valor das mil liras parece que se concentra
totalmente naquele fio; quando a nota é engolida uma lampadazinha acende, e
devo me apressar para inserir a tromba da bomba na boca do tanque, fazendo
irromper o jato que vibra compacto em sua transparência irisada, me apressar
para gozar desse dom nada apetitoso para os meus sentidos, mas avidamente
cobiçado por essa parte de mim mesmo que é o meu meio de locomoção. Mal
tenho tempo de pensar em tudo isso e eis que, num estalo seco, o fluxo se
interrompe, as lampadazinhas se apagam, o complicado dispositivo posto em
movimento poucos segundos antes já está parado e inerte, o despertar das
forças telúricas que meus ritos tinham conseguido evocar durou um instante.
Para as minhas mil liras reduzidas a um fio a bomba concede apenas um fio de
gasolina. Onze dólares o barril, é o preço do óleo bruto.
Devo recomeçar a operação desde o início, enfiar outra nota, depois mais
outras, mil liras de cada vez. O dinheiro e o mundo subterrâneo mantêm um
velho laço de parentesco; a história deles se desenrola ao longo de cataclismos
ora lentíssimos ora inesperados; enquanto estou me abastecendo no self-service,
uma bolha de gás incha num lago negro submerso no fundo do Golfo Pérsico,
um emir leva ao peito, em silêncio, as mãos escondidas nas largas mangas
brancas, um computador da Exxon devora números num arranha-céu, uma
frota de cargueiros em alto-mar recebe a ordem de mudar de rota, eu remexo
meus bolsos, o poder filiforme do papel-moeda se desvanece.
Olho ao redor: fiquei sozinho no posto deserto. Terminou inesperadamente o
vaivém dos automóveis em torno do único posto de abastecimento da cidade
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
#1