Um General na Biblioteca

(Carla ScalaEjcveS) #1

rudimentar...
NEANDER — É você. O que você está falando? O que você sabe? A
comida, sabe?, é a mesma comida atrás da qual eu vou e que o urso vai. Os
bichos velozes, o mais esperto para pegá-los sou eu; os bichos grandes, o mais
esperto para pegá-los é o urso. Entendeu? E depois ou é o urso que traz eles para
mim ou sou eu que levo eles para o urso. Entendeu?
ENTREVISTADOR — Está claríssimo, tudo bem, senhor Neander, não há
razão para que o senhor fique nervoso. É um caso, digamos, de simbiose entre
duas espécies, uma espécie do gênero homo e uma espécie do gênero ursus; ou
melhor, é uma situação de equilíbrio biológico, se quisermos: no meio da
ferocidade cruel da luta pela sobrevivência, eis que se estabelece como que um
entendimento tácito...
NEANDER — E depois, ou é o urso que me mata, a mim, ou sou eu que o
mato, o urso...
ENTREVISTADOR — É isso, é isso, a luta pela sobrevivência volta a ser
travada, o mais capaz triunfa, isto é, não só o mais forte — e o senhor Neander,
mesmo com as pernas um pouco curtas, é muito musculoso —, mas sobretudo o
mais inteligente, e o senhor Neander, apesar da testa com a curvatura côncava,
quase horizontal, manifesta faculdades mentais surpreendentes... Esta é a
pergunta que eu gostaria de lhe fazer, senhor Neander: houve um momento em
que o senhor temeu que o gênero humano sucumbisse? Está me entendendo,
senhor Neander? Desaparecesse da face da Terra?
NEANDER — Minha vovó... Minha vovó na terra...
ENTREVISTADOR — O senhor Neander volta a esse episódio que deve
ser uma experiência, digamos, traumática do seu passado... Aliás: do nosso
passado.
NEANDER — O urso na terra... Eu comi o urso... Eu: você não.
ENTREVISTADOR — Eu queria justamente lhe perguntar isso também:
se houve um momento em que o senhor teve a nítida sensação da vitória do
gênero humano, a certeza de que os ursos é que iam se extinguir, e não nós,
porque nada poderia interromper o nosso caminho, e que o senhor iria um dia se
ver merecendo a nossa gratidão, digo, de toda a humanidade, senhor Neander,
ao chegar ao mais alto grau da sua evolução, gratidão que lhe exprimo hoje
deste microfone...
NEANDER — Humm... Eu, se tem que caminhar eu caminho... se tem que
parar eu paro... se tem que comer o urso eu paro e como o urso... Depois eu
caminho, e o urso fica parado, um osso aqui, na terra, um osso ali, na terra...
Atrás de mim tem os outros que vêm, caminham, até onde está o urso, parado,
os outros param, comem o urso... O meu filho morde um osso, um outro filho
meu morde outro osso, um outro filho meu morde outro osso...

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