Um General na Biblioteca

(Carla ScalaEjcveS) #1

Foi isso, e talvez também o contato das pedras sob meus pés — os seixos
gastos do fundo, com o dorso incrustado de um véu de algas encolhidas — ou o
inevitável movimento de meus passos, de meus pulos de um rochedo para outro,
ou talvez tenha sido apenas o barulho do cascalho desmoronando.
O fato é que a diferença entre mim e aqueles lugares diminuiu e delineou-se:
uma espécie de fraternidade como que de consanguinidade metafísica me
ligava àquelas pedras, solo fecundo de tímidos, tenacíssimos liquens. E no velho
rio seco reconheci um antigo pai meu, despido.
Assim, andávamos pelo rio seco. Quem se movia ao meu lado era um
companheiro de destino, homem do lugar, cujo tom escuro da pele e do pelo que
lhe descia em tufos até as costas, além do inchaço dos lábios e do perfil
achatado, conferia-lhe um semblante grotesco de chefe de tribo não sei bem se
congolês ou da Oceania. Ele tinha um jeito orgulhoso e galhardo, tanto no rosto,
apesar dos óculos grandes, como no andar, que contrastava porém com o
desmazelo nada elegante dos banhistas improvisados que nós éramos. Embora
fosse na vida casto como um quaker, nas conversas era, ao contrário, obsceno
como um sátiro. Seu sotaque era o mais aspirado e veemente que já havia
escutado: falava com a boca eternamente escancarada ou cheia de ar, soltando,
como um contínuo desafogo de seu temperamento corrosivo, furacões de
impropérios nunca ouvidos.
Assim, subíamos o rio seco à procura de um alargamento do veio onde
lavarmos nossos corpos, que estavam sujos e cansados.
Ora, para nós que caminhávamos por seu grande ventre, num meandro do
rio o cenário enriqueceu-se com novos objetos. Sobre altos rochedos brancos,
promessa de aventura para os olhos, sentavam-se duas, três, talvez quatro
senhoritas, em trajes de banho. Maiôs vermelhos e amarelos — também azuis,
é provável, mas não me lembro: meus olhos só precisavam do vermelho e do
amarelo — e touquinhas, como numa praia na moda.
Foi como um canto de galo.
Um palmo de água verde corria ali perto e chegava aos calcanhares; ali se
acocoravam, para se banharem.
Paramos, divididos entre o regozijo do espetáculo que se oferecia à nossa
vista, a mordida das saudades que ele despertava e a vergonha de nós mesmos,
feios e ridículos. Depois andamos até elas, que nos observavam com
indiferença, e arriscamos umas frases, estudadas, como de costume, as mais
espirituosas e banais possíveis. Meu companheiro mordaz participou da
brincadeira sem entusiasmo, com uma espécie de tímida reserva.
O fato é que pouco depois, cansados tanto do nosso elaborado discurso como
da fria resposta que tivemos, saímos de novo a caminho, dando livre curso a
comentários mais fáceis. E para nos consolar bastava, guardada nos olhos,

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