Um General na Biblioteca

(Carla ScalaEjcveS) #1

uso preciso do tempo — nunca tive a chance de sentir a não ser de modo
superficial e distraído.
É claro que conseguir uma ligação a essa hora é impossível. Melhor eu me
conformar, mas se desisto de falar com você terei de enfrentar de novo, e de
imediato, o telefone como um instrumento completamente diferente, como
uma outra parte de mim à qual cabem outras funções: há uma série de reuniões
de negócios nesta cidade que preciso confirmar com urgência, devo me separar
do circuito mental que me liga a você e me inserir naquele que corresponde às
minhas inspeções periódicas nas empresas controladas por meu grupo ou em que
ela tem participação; isto é, devo efetuar uma comutação, não no telefone, mas
em mim mesmo, no meu comportamento diante do telefone.
Primeiro quero fazer uma última tentativa, repetirei mais uma vez a
sequência de algarismos que agora tomou o lugar do seu nome, do seu rosto, de
você. Se der certo, tudo bem; se não, desisto. Enquanto isso posso continuar a
pensar coisas que nunca lhe direi, pensamentos dirigidos mais ao telefone do que
a você, decorrentes da relação que tenho com você através do telefone, ou
melhor, da relação que tenho com o telefone, tendo você como pretexto.
Na rotação dos pensamentos que acompanham a rotação de mecanismos
distantes se apresentam a mim rostos de outras destinatárias de interurbanos,
vibram vozes de timbre diferente, o disco combina e decompõe sotaques,
atitudes e humores, mas não consigo fixar a imagem de uma interlocutora ideal
para a minha ânsia de ligações de longa distância. Tudo começa a se confundir
na minha mente: os rostos, os nomes, as vozes, os números da Antuérpia, de
Zurique, de Hamburgo. Não que eu espere de um número algo mais que de
outro: nem quanto à probabilidade de conseguir a ligação, nem quanto ao que —
uma vez conseguida a ligação — eu poderia dizer ou ouvir. Mas nem por isso
desisto de insistir em fazer um contato com a Antuérpia ou Zurique ou
Hamburgo ou qualquer outra cidade que seja a sua: já esqueci o seu número no
carrossel de números que há uma hora vou alternando sem sorte.
Há coisas que, sem que minha voz a alcance, sinto necessidade de lhe dizer:
e tanto faz se estou me dirigindo a você da Antuérpia, ou a você de Zurique, ou
a você de Hamburgo. Saiba que o momento do meu verdadeiro encontro com
você não é quando, na Antuérpia, ou em Zurique, ou em Hamburgo, eu a
encontro de noite depois de minhas reuniões de negócios; isso é apenas o aspecto
previsível, inevitável de nossa relação: as rusgas, as reconciliações, os rancores,
os retornos da chama; em cada cidade e com cada interlocutora repete-se o
ritual que é de praxe com você. Assim como é um número de Göteborg, ou de
Bilbao, ou de Marselha, aquele para o qual espasmodicamente ligarei (tentarei
ligar) tão logo eu retorne à sua cidade, antes mesmo de você saber de minha
chegada: um número para o qual agora seria fácil ligar, num telefonema urbano
aqui na rede de Göteborg, ou de Bilbao, ou de Marselha (não lembro mais onde

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